Manoel Fernandes Neto e Júlia Schultz
Diz o poeta Fernando Pessoa em seu “Poema em linha reta” que nunca conheceu “quem tivesse levado porrada”. E que todos seus conhecidos “têm sido campeões em tudo”.
A ode histórica pode ser considerada como canto de protesto contra aqueles que se perderam nas sombras do autoengano. Sim, estamos fadados a um suposto fracasso se não escondermos nossas imperfeições da sociedade, de nossos amigos, de nós mesmos.
Em mundo falseado pelas redes sociais, repletas da parte mais agridoce (enjoativa?) que nos convém, decantam-se rapapés e manuais de autoajuda: “a perfeição em 7 dias ou o dinheiro de volta”.
Confessar uma “infâmia” – ou um “enxovalho”, como diz o poeta – nem nas notas de rodapé. O que vale mesmo é uma falsa perfeição, negando-se a si mesmo.
Por todos os lados, o primor é uma roupa que todos querem vestir, com sorrisos amarelos e engajamentos vazios.
Nesta edição da revista Harmonia, utilizamos a “voz humana” que nos solicita Pessoa – mortal, falível, mas verdadeira – em sete textos elucidativos para a auxiliar na compreensão do capítulo XII – Perfeição Moral, de “O livro dos espíritos”.
Para abrir a edição, temos o provocativo texto “De que perfeição me falas?” Nele, Milton Medran Moreira discute com capacidade argumentativa a dificuldade dos seres humanos, encarnados ou desencarnados, dialogarem com o conceito de perfeição moral. O autor advoga que a imperfeição é um atributo humano em todas as esferas da sociedade judaico-cristã. Traz para a dialógica Jesus, Santo Agostinho, Sócrates; apresenta de forma competente a distinção entre perfectível e perfeito, inserindo no debate a doutrina espírita para a compreensão do tema.
Leopoldina Xavier nos propõe olhar no espelho em seu instigante texto “O egoísmo tem limite?”. Ela nos leva a refletir acerca das atitudes diárias e egoístas que cada um de nós podemos ter e que, por vezes, podem ultrapassar os nossos muros, invadindo a liberdade e as escolhas das outras pessoas, causando danos a elas e a nós mesmos.
Mas que olhar colocar sobre o chamado “agora”? Em “Prognóstico para o futuro”, Cláudio Bueno da Silva discorre sobre o amor fraternal, a efetiva compreensão sobre nosso próprio estágio evolutivo, a superioridade moral como prática real, que não se limita às teorias que nos dias de hoje são tão distantes da prática e que serão vivenciadas, em essência, num futuro ainda distante.
Já Ana Cláudia Laurindo nos conduz a pensar em relação às nossas ideias ilusórias a respeito de quem realmente somos, bem como, à compreensão das virtudes que temos ou acreditamos ter. Seu texto “Análises e inspirações na busca da perfeição moral” questiona a importância das efetivas transformações em nós mesmos, no sentido a se alcançar, mas gradativamente, a perfeição moral.
Nesse caminho, Jacira Jacinto da Silva amplia a abordagem no texto “Perfeição Moral”, agregando ao debate a proposta filosófica do humanismo, “reconhecendo nos seres humanos os grandes protagonistas da história”. Traz a reencarnação como grande esperança de progresso na construção de um mundo sem mazelas. Reclassifica, de forma poética, a utopia espírita como força propulsora dos nossos passos. E conclama a todos a promover “educação, saúde, cultura, ciência, justiça social e paz, aproximando-nos da proposta espírita de Perfeição Moral”.
Dessa utopia, surge um alfarrabista de Lisboa, um “O livro dos espíritos” usado, uma marcação em vermelho feita por um leitor anterior sobre uma questão. Fatos que despertam em Célia Aldegalega a inspiração para o seu texto “A Morte da Inércia”. Um turbilhão de reflexões. Com a reencarnação como pedra angular do progresso, a autora traz para o debate Elon Musk e Jeff Bezos, o “consumismo caridoso” do Natal, além da obra de Saramago. No âmago, a compreensão do progresso da civilização, os escândalos, o egoísmo, a demonstrar que somos responsáveis pelo nosso próprio impulso para a perfeição.
Mas como despertamos após esse mosaico de ideias? Em “O labirinto do perfeccionismo: cogitações sobre a perfeição moral”, Marcelo Henrique magistralmente debruça-se sobre a contradição que nos impõe a perfeição tal “como também vosso Pai celestial é perfeito”. Nos descortina uma jornada a partir da religião e do saber teológico, passando pelo marco zero do simples e do ignorante, até o livre-arbítrio e a causalidade. Dessa forma, o autor denuncia – e descarta – a cultura da perfeição como dominação, na defesa da saúde emocional e física. O resultado são luzes de saberes que nos revelam a saída deste labirinto.
Como sempre, a Revista Harmonia não se acovarda diante da necessidade de uma análise profunda sobre um tema que ora nos assombra, ora nos confunde.
Longe de casulos espíritas, em instituições e transmissões ao vivo, com seus avatares superficiais, podemos, sim, respirar!
Sim, Pessoa, aqui temos gente sem medo de revisitar a infâmia e a vileza para nos conhecer e reconhecer a importância do outro.
Ou, como você mesmo diz: “Arre, estou farto de semideuses!”
Esperamos que todos gostem da edição.
Uma ótima leitura e reflexões.
Imagem de Gerhard por Pixabay
Textos da edição:
Análises e inspirações na busca da “perfeição moral”, por Ana Cláudia Laurindo
O labirinto do perfeccionismo: cogitações sobre a perfeição moral, por Marcelo Henrique