A ambiência espírita contemporânea está repleta de dissensões e contradições. Eivada de um forte arcaísmo, permanece desmemoriada ou fingindo não compreender a progressividade da Doutrina e seu elo intrínseco com o livre pensar, dominada por um projeto de poder arraigado no “mainstream”, que denota orgulhos e vaidades.
Relevante, também, refletirmos sobre como evitar caminhos que podemos seguir ao nutrimos, nós mesmos, as mesmas mazelas: as sementes de dominação, o controle do outro e o cultivo de sistemas muitas vezes prejudiciais à sociedade e a nós mesmos. “Estamos em jornada de aprendizado”, afirmamos. E o que nos surge é o equívoco de que a estrutura erguida está segura — e mantida — somente com a pedra angular que supostamente temos em mãos.
Dúvidas, certezas, caminhos, direções a serem tomadas. A exploração de cada ângulo e situação é um dos pilares da Revista Harmonia, desde sua fundação (junho de 1987) e também do Grupo ECK (abril de 2017), que investe no debate, no contraditório e na diversidade de abordagens. Sem medo de enfrentar nossas próprias “verdades”.
Ou como diz o mestre Herculano Pires (“O Espírito e o Tempo”, p. 247):
“O homem é incoerência e paixão, labareda esquiva que se apaga nas cinzas, mas o Espírito é a centelha oculta que nunca se apaga e reacenderá a chama quantas vezes for necessário, para que a serenidade, a coerência e o amor o resgatem na duração dos séculos e dos milênios.”
As questões se multiplicam: até que ponto seria abalada a doutrina com as “invenções” que surgem na casa espírita? Quando iremos erguer o olhar para o horizonte, transcendendo o que já assimilamos em termos de aprendizado espírita? Felicidade, dor, novos mundos, fim do planeta, avatares em propulsão. Dominações, tiranias, fome. Efeitos sem causas; causas sem efeitos. Felicidade e agonias, consensos e dissensos. Ao meio dessas indagações, haverá um caminho para as buscas espirituais? Esse é o mote da presente edição da Revista Harmonia de fevereiro, com o tema “Um caminho de buscas espirituais”, conforme revelamos a seguir.
Kardec sempre se preocupou com os desvios no Espiritismo causados, principalmente, pela vaidade e pelo orgulho, o que abre campo para variadas interpretações e inserções de práticas estranhas ao corpo doutrinário, da parte dos “novidadeiros” como Herculano Pires denominava, aliás, “Novidadeiros” é o título do artigo de Cláudio Bueno da Silva, onde, ele nos alerta para tais ocorrências, e nos força a reavaliar e repensar muitas práticas adotadas na ambiência espírita tão distantes dos fundamentos expostos pelos Espíritos luminares e pelo pensamento kardeciano.
Corroborando com os desvios praticados no corpo doutrinário, a fragmentação das identidades se afigura como mais um obstáculo para a construção de um projeto coletivo, quando um fator sobejamente colonialista e ainda contemporâneo relega parte da humanidade ao ostracismo gerado por questões raciais, tema abordado no artigo “Dividir para Conquistar: Reflexões sobre Fragmentação Histórica, Atual e Espiritual no Brasil”, de Nathalia Koch de Matos, a qual amplia o fosso ideológico e identitário no seio do meio espírita e da sociedade.
O lirismo ácido do artigo de Wilson Custódio Filho — “O grito da Mãe Terra e o silêncio dos Homens de Bem” —, traduz em delineadas linhas a corrupção gerada pelo ser humano eivada pelo orgulho e vaidade. A prepotência de pseudo-deidades que infligem o ópio viciante da dominação, tão contrário às Leis Naturais e aos ensinos de Jesus de Nazaré. Gaia grita, mas os ouvidos moucos não discernem seu lamento, triste e avassalador, que se intensifica em meio a esparsos esforços por seu cuidado. Então, que a timidez dos bons seja abandonada, que os espíritos milenares que aqui habitam se conscientizem e permitam a sobrevivência dessa morada, tão linda e azul.
Em “A lógica da causa e efeito”, por José Edson F. Mendonça, temos um precioso rol de conceitos espíritas: o livre pensamento, o livre arbítrio, as causas e efeitos, as relações inter existenciais, o existir e o viver em ambas as dimensões — material e espiritual —, pautadas pelas Leis Naturais e pela compreensão da ética espírita como propulsora do progresso.
“A perfeita sublimação da alma requer o concurso do tempo”, de Astolfo O. de Oliveira Filho, expõe a dinâmica progressiva para um mundo regenerado, inexoravelmente interligado com o tempo, onde o ser espiritual, através de sua jornada reencarnatória, aprimora e sublima o progresso moral, intelectual e espiritual, alavancando, pari passu, a sociedade e o mundo.
A crônica “A chave para a felicidade”, de Cássio Leonardo Carrara, tem como mote a vivência do ser no mundo, aprofundando seus relacionamentos prazerosos ou não, em fatores sujeitos às intempéries existenciais e a evolução do ser interexistencial, na eterna busca da felicidade e a chave para conquistá-la. Valendo-se dos ensinos de Jesus de Nazaré, dos conhecimentos psicanalíticos e espiritistas, o autor versa sobre a felicidade possível em um mundo de provas e expiações e os instrumentos bastantes para o equilíbrio e convívio social como reais parâmetros de felicidade, compreensão e aprendizado.
Para fechar magistralmente, Marcelo Henrique, em “A (verdadeira e necessária) união entre os espíritas, segundo Vicente de Paulo”, aborda a dicotomia vigente no meio espírita que segue se digladiando, em busca de uma hipotética unidade travestida em uniformidade e dependência, num ambiente sem diálogo, com disputas de poder e influência, distante do ideal espiritista que orienta a vigência do combate de toda e qualquer intolerância, preconceito e fundamentalismo. Diante disto, em várias comunicações, o Espírito de Vicente de Paulo afirma, sobretudo, a falta de humildade e de caridade nas condutas humanas, elas que seriam as qualidades motoras para cumprir os pressupostos de uma doutrina coesa e unida.
Nesta edição, a Revista Harmonia investe em provocações intelectuais para que a sua busca de um caminho espiritual — e sua jornada diária — seja repleta de descobertas.
E de dúvidas.
Boa leitura!
Imagem de Adam Tumidajewicz por Pixabay
Edição: Fevereiro de 2025
Editorial: Uma jornada de dúvidas e descobertas, por Nelson Santos e Manoel Fernandes Neto
O grito da Mãe Terra e o silêncio dos Homens de Bem, por Wilson Custódio Filho
A perfeita sublimação da alma requer o concurso do tempo, por Astolfo O. de Oliveira Filho
A (verdadeira e necessária) união entre os espíritas, segundo Vicente de Paulo, por Marcelo Henrique