Espiritismo e Engenharia Genética: hora de iniciarmos um debate sério, por Marcelo C. Regis

Tempo de leitura: 8 minutos

Marcelo C. Regis

Que sociedade queremos no futuro? Como garantir o acesso a essas tecnologias a todos na Terra? Como evitar que uma ditadura da genética seja instalada? Como evitar que ainda mais o foco do ser humano seja seu corpo, sua aparência e não sua espiritualidade e suas qualidades morais?

Nos últimos tempos o mote do setor mais progressista dentro do Movimento Espírita tem sido a atualização do Espiritismo. Temos discutido se devemos atualizar, se vale a pena atualizar, como atualizar, etc. A Confederação Espírita Pan-Americana (CEPA) – hoje CEPA Associação Espírita Internacional – se posicionou oficialmente a favor da atualização do Espiritismo no congresso de Porto Alegre (2000).

Passada a fase de alinhamento quanto à conveniência da atualização do Espiritismo acho que podemos passar à ação e começar a discutir alguns temas relevantes para a sociedade e o nosso tempo e que requerem posicionamento do Espiritismo. Tenho refletindo sobre o fato de o Movimento Espirita ser sempre levado de roldão pelas descobertas da ciência e nunca ter se antecipado a nenhum debate. Assim temos sempre reagido aos fatos depois de que as descobertas são feitas, procurando “encaixar” a explicação espírita. Como exemplo disso, não tivemos nenhum debate mais profundo sobre aborto, eutanásia, transplantes, fecundação in-vitro, etc. Temas que afetam nosso entendimento de mundo e das relações espírito-corpo.

Temos agora uma grande oportunidade de mudar esse quadro. O incipiente campo da engenharia genética nos oferece essa chance. A evolução das pesquisas e as novas descobertas e técnicas nesse campo irão com certeza modificar muitos de nossos padrões morais e éticos e devemos nos antecipar aos fatos e abrir um debate sobre as implicações ético-morais da engenharia genética.

No histórico da biologia e das ciências da vida sempre tivemos um conflito constante, pendular entre vitalismo e mecanicismo, ora um ora outro tomando à frente nas discussões e propostas científicas. Os avanços da engenharia genética deram muita força ao mecanicismo, pois oferecem apoio científico à proposição mecanicista-materialista de que a vida seria produto das reações físico-químicas no âmbito celular e o organismo o produto da somatória de suas partes constituintes (nesse caso as células). Em oposição, a proposta vitalista se baseia na existência de um componente não-físico para explicar a vida. Reconhecendo que o organismo é mais do que a soma de suas partes constituintes, o vitalismo propõe a existência de campos, energias extrafísicas de forma a manter a estrutura e governar as funções corporais. Hoje já se discute uma terceira via, também materialista, porém menos mecanicista, o organicismo. O organicismo, assim como o vitalismo, entende que a vida é mais do que a somatória de reações físico-químicas no âmbito celular, propondo que o todo (corpo) seria maior que a somatória de suas partes (células). Porém, os biólogos organicistas, ao contrário dos vitalistas, oferecem como explicação o entendimento da organização, ou das relações organizadoras, tal como uma teia autossuficiente de inter-relações entre órgãos, células, tecidos, etc., onde cada parte representa o todo e o todo é contido em todas as partes.

A posição espírita é claramente vitalista ao oferecer como componente extracorpóreo, o perispírito e o Espírito, ambos como muita atuação nas funções orgânicas e na sustentação da vida.

A engenharia genética teve um momento de grande repercussão ao oferecer a possibilidade de manipularmos o corpo e suas características e, mais ainda, ao propor que até mesmo características psicológicas estariam governadas pela sequência genética, em franco apoio ao materialismo e ao determinismo. O momento de maior repercussão dessa proposta foi quando do sucesso da clonagem da ovelha Dolly, mostrando ao mundo a possibilidade de criarmos um ser completamente novo, sem utilizarmos os tradicionais métodos da reprodução sexuada. Estaríamos “brincando de Deus” como se referiram alguns cientistas e teólogos. Nasceram daí esperanças de que a vida e o corpo poderiam ser determinados a partir da sequência de genes e que, num futuro próximo, poderíamos escolher não só nossas características físicas, mas, também, as inclinações morais. Após o mapeamento do genoma humano tal pretensão arrefeceu um pouco, pois foi constatado que não temos tantas informações assim em nosso código genético e que o mesmo é muito similar ao de animais muito inferiores ao homem. De qualquer forma, apesar desse tropeço, é fato que as características físicas são determinadas por nossa herança genética e muitas de nossas doenças têm cunho genético. Outro fato que devemos reconhecer é que as pesquisas nesse campo irão apenas aumentar, em volume e velocidade.

Ao estudarmos o ser humano, não é possível separá-lo em partes estanques: corpo e alma. O ser humano é um todo somente entendido por suas relações entre corpo/Espírito e vice-versa. Esse complexo Espírito/corpo está em constante inter-relação e não se pode conceber um sem o outro, enquanto encarnados. Ressalto esse ponto de forma a justificar a importância moral de nossa forma física. Chego a afirmar que nossa moral, que nossa ética em muito advém de como nosso corpo é constituído e de como mantemos o funcionamento do mesmo. Muitos problemas morais têm como ponto de partida (ou como elemento catalisador) nossas características físicas. O racismo é claramente a expressão moral de ódio potencializada por uma diferença física. O mesmo se dá com a discriminação quanto ao sexo. Portanto apesar de acreditar que a engenharia genética não vai derrubar a necessidade do Espírito na formação do ser humano, é certo que o mundo vai passar por muitas transformações morais devido a manipulação genética que temos à nossa frente.

Devemos reconhecer que as pesquisas nesse campo vão avançar, queiramos nós os espíritas ou não, debatamos o tema ou não. É certo que teremos à nossa disposição nesse século tecnologias e ferramentas ainda não imaginadas; portanto temos de nos preparar para analisarmos o que queremos no nosso futuro. Apesar de a ciência disponibilizar diversas ferramentas, cabe a nós, a sociedade, decidirmos o que é bom eticamente e o que não é, ou seja, podemos decidir como humanidade o que vamos e o que não vamos admitir. O mesmo ocorreu com as descobertas no campo da energia atômica. Apesar de termos disponíveis vários meios de destruição total, temos escolhido não utilizar os mesmos por reconhecermos que os mesmos causam mais problemas que soluções ao ser humano e à natureza. O fato de que através da engenharia genética podemos “brincar de Deus” não diminui nossa responsabilidade em decidir, como sociedade, o que faremos com essa tecnologia.

Portanto devemos iniciar esse debate no meio espírita o quanto antes, formulando propostas e posições ético-morais frente os avanços da engenharia genética, oferecendo alguma ajuda aos espíritas e à sociedade em geral. E, como forma de incentivar o debate vamos analisar alguns aspectos ético-morais que devem ser alterados devido à engenharia genética.

É bem possível que num futuro bem próximo os pais possam escolher várias características genéticas para seus filhos. Com a descoberta das correlações entre genes e doenças é também provável que os pais tentem de tudo para que seus filhos não tenham tendências ao desenvolvimento de doenças hereditárias tais como: a síndrome de Down, a anemia celular falciforme, o mal de Parkinson, etc. À primeira vista teríamos a promessa de um mundo melhor, livre de doenças hereditárias, a medicina realmente focada na cura e não no tratamento, e teríamos vidas mais longas e saudáveis. Porém devemos considerar o outro lado dessa moeda: poderíamos estar diminuindo a biodiversidade ou alterando irrevogavelmente a cadeia gênica humana e tendo consequências imprevisíveis devido à manipulação genética. Imaginem que todos os seres humanos possuam o mesmo cromossomo antienvelhecimento como forma de aumentar nossa expectativa de vida. E se ocorresse que esse cromossomo nos deixasse vulneráveis a um vírus ainda desconhecido. Se esse vírus entrasse em nós poderia nos matar a todos.

Temos também todo um lado econômico a ser analisado e como será distribuído o conhecimento. Já temos várias patentes genéticas, que restringem a utilização das técnicas apenas a seus detentores. Dessa forma está se criando mais um mercado, com a manipulação do código genético sendo acessível apenas a quem possa pagar. Teríamos o risco de consolidar a diferença entre ricos e pobres também no campo genético: um quadro assustador, mas bem possível. Hoje as diferenças econômicas já são impressas na constituição física do indivíduo, pois os filhos de famílias mais abastadas se alimentam melhor e, portanto, têm mais condições de desenvolverem suas habilidades físico-intelectuais. Porém, no futuro poderemos ter essas diferenças realmente impressas no código genético. Os filhos de famílias mais ricas, por terem acesso à manipulação do código genético, seriam possuidores de genes/predisposições a menos doenças, a melhor performance intelectual, a maior expectativa de vida, etc., o que tornaria o fosso entre ricos e pobre mais pronunciado, físico e muito mais difícil de ser transposto.

O acesso ao código genético pode iniciar uma nova onda de preconceitos econômicos e sociais. Já se fala no uso de informações genéticas no recrutamento e seleção de pessoal nas empresas. Além disso, seguradoras já utilizam informações genéticas para determinar o risco a ser pago para se aderir aos seguros de saúde. As consequências da disseminação dessas práticas são claras: nenhuma empresa estaria disposta a oferecer emprego ou plano de saúde a uma pessoa com alta probabilidade de desenvolver alguma doença séria e cara. Podemos estar gerando um novo preconceito: o preconceito genético.

Outra grande possibilidade e utilidade da engenharia genética é a formação de bancos contendo informações genéticas de todas as pessoas. Ao nascermos, seriam colhidas amostras e as informações genéticas armazenadas em bancos de dados. Tais informações seriam muito úteis na solução de crimes, no tratamento de doenças, na identificação de possíveis doadores de órgãos, etc. De fato, já existem alguns desses bancos na área militar, no FBI e em alguns hospitais aqui dos Estados Unidos. Apesar das boas intenções desses bancos de dados genéticos, temos aí mais um potencial risco: o da quebra de sigilo genético e da invasão de privacidade; portanto, mais uma questão ética. Não tendo controle sobre seus dados, as informações individuais podem ser utilizadas para fins não tão nobres, como chantagem, manipulação política, exposição de fraquezas e problemas.

A engenharia genética ainda toca em muitas outras questões ético-morais, tais como: separar o ato sexual da procriação; a unicidade de cada vida humana (podemos ter linhagens de clones com os mesmos códigos genéticos); o planejamento genético total; a eliminação de fetos e embriões com alguma característica genética não desejada (será que não poderíamos perder aí muitos gênios? Quem decidiria o que é aceitável e o que deve ser eliminado?). A genética está no campo das probabilidades e não das certezas.

A lista de alterações é grande e nela podemos incluir ainda os alimentos transgênicos, a criação de órgãos humanos em animais para facilitar os transplantes, a criação de animais transgênicos, etc.

Por tudo que expusemos acima, fica claro que a engenharia genética, por mexer com os seres vivos, toca diretamente no campo de estudo do Espiritismo. Ou seja, o Espírito. Como ficam as leis da reencarnação frente à clonagem? E a existência de princípios espirituais nos animais e vegetais, frente às criações de laboratório (tomates com genes de vacas, porcos com órgãos humanos, animais sem a possibilidade de reprodução natural, etc.). Como aplicar as leis morais frente aos novos desafios? Que sociedade queremos no futuro? Como lidar com pais que, por amarem seus filhos, querem evitar que os mesmos tenham doenças hereditárias, porém colocando em risco a biodiversidade ou gerando mais preconceitos? Como garantir o acesso a essas tecnologias a todos na Terra? Como evitar que uma ditadura da genética seja instalada? Como evitar que ainda mais o foco do ser humano seja seu corpo, sua aparência e não sua espiritualidade e suas qualidades morais?

Os campos de estudo e aplicação da engenharia genética expostos acima não são meros contos de ficção científica, improváveis hipóteses. Todos, sem exceção, já estão ocorrendo em nível experimental. A velocidade das pesquisas, turbinada pelo crescente interesse econômico nesse promissor filão é garantia que esse século verá muitos avanços nessa área. Portanto urge que os espíritas debatam o tema, se antecipem a ele e firmem posição a ser defendida na sociedade. O interessante desse momento é que estamos reconhecendo de forma global que podemos nos antecipar à tecnologia e até determinar o que queremos. E outros já estão fazendo o mesmo. Hoje temos uma disciplina (a Bioética) que se dedica ao debate das consequências humanas das inovações tecnológicas nos campos das ciências da vida. Além disso, vários teólogos e cientistas têm discutido essas questões, num entendimento de que a tecnologia não é isenta, neutra e deve ser debatida do ponto de vista de suas aplicações morais.

Atualizar o Espiritismo é colocá-lo em sintonia com nosso tempo e oferecer caminhos e propostas que façam sentido ao Homem do século XXI. As consequências da engenharia genética com certeza se enquadram nesse escopo.

Imagem: Unplash

ACESSE OS TEXTOS DA EDIÇÃO:

Editorial: A Lei de Reprodução perante a sociedade contemporânea

A Lei de Reprodução e o seu lento avanço, por Júlia Schultz

Relações Sexuais à luz do Espiritismo, por Marcelo Henrique

Espiritismo e Engenharia Genética: hora de iniciarmos um debate sério, por Marcelo C. Regis

A Clonagem Humana, por Pedro Gregori

A Bioética e o Paradigma Espírita, por Núbor Orlando Facure

E o Controle da Natalidade?, por Carlos A. Parchen

Espiritismo e Superioridade das Raças: uma perspectiva espírita com base na Lei da Reprodução, por Juvan Neto

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

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