Mais Kardec, portanto, e menos mediunismo!
Marcelo Henrique
“Um Espírito pode não ocupar entre os seus semelhantes a posição que lhe atribuímos; mas se for verdadeiramente superior deve ter-se despojado de todo orgulho e de toda vaidade e, desde então, olha o sentimento e não as exterioridades”
Allan Kardec (“Instruções práticas sobre as manifestações espíritas”).
Entre a conduta de Kardec no contato com inúmeros Espíritos e a sistemática adotada nas instituições espíritas brasileiras, neste e no século passado, há um evidente e enorme hiato.
O professor francês, a seu tempo, empreendeu com as Inteligências Invisíveis uma série de diálogos produtivos, graças a presença e atuação dos médiuns com quem diretamente conviveu. Em paralelo, também dedicou-se e debruçou-se sobre um sem número de psicografias, enviadas por meio de cartas endereçadas à Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, oriundas de outras partes da França, da Europa e, até, da América.
Kardec jamais se empolgou com as assinaturas, nem, tampouco, deu importância desmedida aos falíveis humanos do seu tempo, que detinham faculdades orgânicas para o exercício da Mediunidade. Tratou uns e outros com respeito, mas sem admiração idólatra ou desmedido entusiasmo. E olha que, das mensagens que selecionou e publicou, muitas delas continham assinaturas ilustres, de personagens gabaritados de vários tempos, não sendo necessário desfilar, aqui, seus nomes.
Para além da identidade grafada nas assinaturas, ele, racionalmente, buscou comparar os estilos com os textos que os mesmos produziram em vida, ou com seus traços biográficos. Muito além, também submeteu cada escrito aos crivos de verdade e utilidade (necessidade), para além do da bondade, também importante – todos atribuídos historicamente a Sócrates – em cada um dos textos que selecionou, afastando aqueles que descartou, por não cumpridores destes requisitos.
Observando, cuidadosa e criteriosamente, o MÉTODO de Kardec para a elaboração de suas obras, vamos constatar:
1) Critérios para a aceitação de mensagens:
a) concordância entre os relatos, ditados por diferentes Espíritos a distintos médiuns; ou, recebidas em locais diferentes; ou, ainda, recepcionadas em várias épocas;
b) logicidade, isto é, obediência ao padrão intelecto-cognitivo da época e não conflitiva com o padrão cientificamente estabelecido; e,
c) superioridade espiritual, ou seja a competência demonstrada para tratar de certos temas.
2) Critérios para a classificação dos Espíritos, sobretudo os considerados Superiores:
a) linguagem digna (respeitosa, educada, benévola, sem maldade ou agressividade e não-coercitiva);
b) não-contradição, dentro do próprio texto ou, caso o Espírito já tivesse se pronunciado, entre o texto novo e o(s) anterior(es), por ele assinado(s);
c) linearidade, isto é, a apresentação do conteúdo sem falhas de lógica e sem conflitos com a filosofia e as ciências; e,
d) qualidade, na forma da inequívoca demonstração de possuir, o Espírito, conhecimento elevado (além da ciência da época ou sem desconhecer os padrões científicos vigentes) e elevação moral (o bem como mestre).
Vemos, por aí, na formatação das psicografias, uma quantidade imensa de textos que não atendem aos requisitos kardecianos, mas que, infelizmente, são tomados como conteúdo “complementar” à Doutrina dos Espíritos. O problema não é psicografar nem exercer a liberdade de pensamento e expressão. Longe disso. O problema continua sendo o de não perceber que, inobstante um linguajar poético, melífluo e com expressões de aparente moralidade, o contexto apresenta, seja para o Espírito seja para o médium, apenas a satisfação da vaidade e do orgulho, expressões das exterioridades mundanas, tendentes à idolatria cega, como, aliás, consta do texto selecionado para esta nossa conversação.
Mais Kardec, portanto, e menos mediunismo!
Imagem de Syaibatul Hamdi por Pixabay
Creio que a lição concedida nesse artigo se estende a todos “abaixo a idolatria”, respeito e admiração é uma coisa, idolatria é outra.
O referido texto me levou a refletir sobre uma prática comum em certas instituições, onde a consulta aos espíritos para qualquer situação é constante, seja por meio da psicografia ou psicofonia. Isso me leva a uma questão importante: onde fica a responsabilidade dos encarnados, considerando que um espírito ou outro responde por tudo? Disseram-me que penso demais e que a pergunta não cabe. Respondi: Tá.