Fernanda Torres e a arte que (ainda) (nos) emociona, por Débora Nogueira e Marcelo Henrique

Tempo de leitura: 5 minutos

Foto por Harald KrichelObra do próprio, CC BY-SA 4.0, Hiperligação

Por Débora Nogueira e Marcelo Henrique

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Quis o destino que, no “aniversário” de dois anos desta malograda e espúria iniciativa de ataque à democracia tupiniquim, estejamos COMEMORANDO a vitória de Fernanda numa alusão a Eunice e a história recontada e com cores reais do Golpe e da Ditadura Militar (1964-1985).

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Ah, a arte. É ela que dá um tempero especial às nossas vidas, quando permite que o real se confunda com o fantasioso, e o fantasioso – porque figura como uma repetição, uma encenação de fatos históricos – reproduz o real que conhecemos e, também, o que desconhecemos.

Eis que a Fernanda II, a filha da majestosa Fernanda Montenegro, a Torres, portanto, protagonizou na noite de ontem (5 de janeiro) uma honraria ao cinema brasileiro: a premiação como melhor atriz na categoria drama, no “Globo de Ouro”.

Mas nós não vimos a premiação. Não tivemos, penso, coragem – diante da perspectiva de vinte e cinco anos depois, o resultado fosse a (nova) decepção. Porque Fernanda, a mãe, Montenegro, tinha lá estado com o filme “Central do Brasil” (1999). Foi o que ambos pensamos.

Esperança, todavia, a gente tinha (e tem), porque afinal somos brasileiros e diz o bordão: “o brasileiro nunca desiste”. Mas, em sendo da classe artística, um no canto e outra no teatro, temos conhecimento dos detalhes e pormenores da indústria cinematográfica e do show-business, assim como de concursos de canto como o “The Voice”. Nunca se sabe, antecipadamente, o resultado que virá.

E ele veio…  Mas, gente… Nossa! Ela ganhou mesmo… Como é bom ver nosso país no topo, reconhecido por seus valores individuais e coletivos, e, neste caso, pela grandeza de sua arte cinematográfica.

É fato que Fernanda Torres trilhou um caminho que muitos não conseguem. Falando em interpretação, estamos habituados à representação bem próxima à realidade, “falsamente” bem feita. Mas, a interpretação VIVA é bem difícil, quando o ator encarna o personagem como se o sentisse, como se ele estivesse ali, ao seu lado, transmitindo psiquicamente o que sentiu, o que vivenciou, em cada cena, agora repetida. Muitos atores, por certo, a perseguem, seguindo métodos de performance e encenação criados, alguns deles com caminhos meio estranhos, absurdos e exóticos e até de um sofrimento profundo.

Vendo o filme, não foram poucos os expectadores e cinéfilos que declaram: – “Fernanda parecia ser ela mesma”, com seus sentimentos e percepções e, com isso, não parecia estar representando. Lembrando que para teóricos e alguns professores – dependendo da cultura e da escola que seguem – representar, soa como “falso”. É fato que a interpretação cenográfica “devolve à vida” um Espírito que já não se encontra, fisicamente, entre nós, como é o caso de Eunice Paiva que é a protagonista. Mas, evidentemente, estamos diante da atuação em que se representa um personagem e ele é, de certo modo, por nós desconhecido e não é (mais) possível conhecê-lo, em essência, porque ele já não faz mais parte do contexto físico, impedindo qualquer diálogo para ouvir, do mesmo, suas impressões ou rememorar os fatos que ele vivenciou.

É, então, bem difícil dar vida a um personagem falecido, muito mais quando este fez parte da história de um país, em que as informações são precárias, em que tudo se fez, em termos da ação de autoridades, para apagar registros e, mais além, há um contingente de pessoas, partícipes dos Anos de Chumbo ou concordantes com a ditadura brasileira (pasme!), que negam ou só conhecem a “história oficial” contada pelos próprios sangrentos protagonistas.

Por isso, a delicadeza de interpretação de Torres dá uma dimensão enorme aos fatos históricos, sem precisar ser explícito e escancarado. Porque a direção é primorosa na sensibilidade e nos detalhes. E a arte permite justamente isso: exercer a crítica ácida dos atos indignos e hediondos do passado que nunca deve ser esquecido, porque o esquecimento faz com que eles tendam a se repetir – como se viu na tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023.

Quis o destino que, no “aniversário” de dois anos desta malograda e espúria iniciativa de ataque à democracia tupiniquim, estejamos COMEMORANDO a vitória de Fernanda numa alusão a Eunice e a história recontada e com cores reais do Golpe e da Ditadura Militar (1964-1985).

Ah, Fernanda, se você fosse nossa vizinha, numa dessas tardes de férias ou num final de semana de um frio outono, estaríamos lhe convidando para uma prosa regada a um café fresquinho e pão de mel (não sabemos nem se ela gosta dessa iguaria!). Para ouvir de você as suas sensações espirituais de interpretar – viver ou reviver! – Eunice com toda a excelência da tua atuação…

Lembrando que, quando o filme terminou, foi necessário e inevitável ficar algum tempo em silêncio, para nos recompormos. O choro sincero tomava conta, ainda que contido, não sendo nem escandaloso nem Rodriguiano, lembrando o grande Nelson Rodrigues. Afinal, ninguém mais ou além dele, em termos de estatura criativa, soube usar da comunicação direta (com o leitor, o espectador), para ser profundo, sem jamais significar ser tedioso nem romper com a linguagem social comum.

O choro, assim, veio carregado de história, de memória de quem viveu, adolescente, jovem ou adulto, como nós, os horrores da sanha ditatorial e seus excessos… Mas também brotou em face de uma brilhante interpretação, uma, não, duas, em quadro (mãe e filha, atrizes, já que Fernanda Montenegro faz uma “ponta” igualmente magnífica na filmagem). Ousamos dizer que o filme representa a ação de contar a história do cinema brasileiro em minutos.

E, ali, ainda sentados, um pouco atônitos e de alma lavada, vimos as Eunices, as Marias, as Clarices e tantas outras mulheres fortes, desse Brasil que sonhou – e ainda sonha e recorda com saudade e carinho – com “tanta gente que partiu num rabo de foguete” (“O bêbado e o equilibrista”, de Aldir Blanc e João Bosco, 1979). Naqueles dias (1964-1985), todos choramos repetidamente o nosso choro contido porque a dor é tanta que não dá nem prá soluçar.

Em “Ainda estou aqui”, tem-se a ditadura escancarada sem escancarar, a crítica desvelada sem criticar, porque a sutileza se encontra na dureza da realidade, e isso basta, na tela. Fernanda brilhou e Selton Mello (que interpreta o marido de Eunice, o engenheiro civil e deputado federal pelo Partido Trabalhista Brasileiro – PTB, Rubens Paiva), um gentleman, abrindo espaço para que ela pudesse se destacar, num tom de parceria e sintonia que só quem divide uma cena com alguém sabe dizer.

O Brasil descrito na forma de um cenário tão cruel e realístico, mas feito poesia e, ainda, com a total entrega de uma atriz. As lágrimas voltaram a aparecer em nossos calejados olhos, no momento da premiação e também, agora, quando terminamos este ensaio. Elas brotam naturalmente dos olhos pelo nosso país, pelos perseguidos da ditadura, pelas vítimas de crimes políticos, pelos afrontados – inclusive recentemente – por aqueles que “sonham” pelo retorno ou perpetuação de governos despóticos, pelos que defendem anistia aos criminosos de 8 de janeiro, pelos que achacam os que pensam diferente, pelos que são contra os homossexuais, as transexuais, os negros, os índios, os imigrantes, os pobres… E pelos nossos artistas e pela Fernanda, pois como disse Augusto Matraga: “Agora chegou a minha vez, a vez do Brasil, vez da Fernanda”.

Nos sentimos, assim, como artistas, igualmente, jovens ou não tão jovens, como se Chico, o Buarque fosse fazer – como o fez para os compositores brasileiros (“Paratodos”, 1993) –, uma linda homenagem para as Fernandas, Sfat, Lemmertz, Miranda, Sorrah, Adélia, Cardoso, Wilma, Severo, Pêra, Camuratti, Ruth, Chica, Zezé, Léa, Fillardis, Yamasaki, Bengell, todas mulheres divinas; e Glauber, Oscarito, Otelo, Autran, Britto, Fagundes, Ramos, Duarte, Gracindo, Cortez, Xavier, Meira, Bastos, Fontoura, Augusto, Mendonça, Gonçalves, Migliaccio, Vereza, Jardel Filho, Manga, nosso elenco de homens fantásticos. Todos da arte, do teatro e do cinema…

Evoé artistas! Evoé Fernanda! Evoé brasileiras e brasileiros! Evoé Brasil!

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

3 thoughts on “Fernanda Torres e a arte que (ainda) (nos) emociona, por Débora Nogueira e Marcelo Henrique

  1. Não conhecia nem a actriz premiada nem o filme, mas pela descrição vou procurar ver. Linda homenagem a todos os intervenientes e assim também ao cinema brasileiro. Parabéns a todos e a quem escreveu este belo texto.

  2. Que leitura maravilhosa! Contempla nosso pensar e orgulha ainda mais o “ser” brasileiro. Apesar dos percalços e enfrentamentos, temos resistência! Esse filme sim representa um pouco da era de chumbo, tempos difíceis que não devem ser esquecidos, porém jamais deve retornar! A premiação veio em um momento onde a cultura está sobrevivendo e brilhando, apesar de todos os desmandos que já viveu.

  3. Parabéns, Fernanda! Acredite, nas cochilas há quem destile fel, mas “deixemos os semeadores de ódio se afogarem em seus próprios impropérios” e sigamos em frente. Ainda Estou Aqui, sem recorrer a grandes discursos ou explicações, consegue transmitir a crueldade do passado da Ditadura Militar e a urgência de jamais esquecer os horrores cometidos durante aquele período tão sombrio da história do Brasil. Não nos esqueceremos! Sem anestia.

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