Luiz Signates
O processo de institucionalização sistêmica do espiritismo , ao transformar o texto de Kardec em cânone, critério de verdade e de definição da identidade espíritas, aprisionou o espiritismo numa forma radical de individualismo, bastante própria da mentalidade burguesa do século XIX, para a qual impera uma visão subjetivista e psicológica do espírito, que é transferida diretamente para as questões éticas – tornadas “morais”, num sentido essencialista, como uma lei divina insculpida por Deus na consciência de cada um –, inteiramente silenciadas social, cultural e politicamente.
Quem definiu o espiritismo como uma ciência psicológica foi o próprio Kardec. Não que ele não tenha se referido a questões e problemas sociais. O problema em Kardec não foi deixar de se referir à sociedade, e sim o modo como ele fez isso. Ao tratar dessas temáticas, ele quase sempre operou a partir de uma perspectiva inteiramente individualista e orientada para o juízo moral.
Veja, por exemplo, o modo como tratou o direito à propriedade, a partir da questão 880 d”O Livro dos Espíritos”. O homem teria direito a ela, desde que fosse adquirida honestamente (juízo moral, q 882) e sem o prejuízo de outrem (juízo moral, q. 884). O desejo de possuir é condenado, quando for para saciar as paixões e o egoísmo (juízo moral, q. 883). Os limites ao direito de propriedade estão ligados à compreensão da lei divina, que é o norte para o progresso espiritual (individualismo, q. 885). E só. São apenas seis questões, uma subquestão e um comentário de uma única frase, para tratar da questão da propriedade. E sem uma única referência sequer à estrutura da sociedade, às instituições sociais, à história ou ao despossuimento como fator de desigualdade.
De forma semelhante podemos analisar o capítulo 7 da parte terceira de “O livro dos espíritos”, sob o título de “Lei de sociedade”. Ali, claramente, Kardec não faz sociologia. É um capítulo curtíssimo, de apenas 10 questões, divididas em três partes, a primeira com três perguntas e um comentário; a segunda com quatro perguntas e um comentário; e a terceira com três perguntas. Na primeira parte ele rapidamente posiciona uma visão utilitarista da relação social, isto é, que as relações sociais existem por causa da necessidade do espírito de progredir.
Na segunda parte do capítulo, ele trata da questão da reclusão e do voto de silêncio, e, sem discutir o contexto social, efetua um juízo moral da reclusão católica, julgando-a como um ato de egoísmo. Na verdade, a vida monástica dos mosteiros e conventos é uma atitude religiosa de solidariedade espiritual: monges e freiras saem do mundo profano para orar pelos homens, mas Kardec e os espíritos parecem não saber disso. E, na última parte, ele trata dos laços de família e retoma a visão utilitarista: a família existe para que os espíritos individuais progridam.
A visão de Kardec sobre a sociedade é, portanto, naturalista e utilitária. E individualista, porque a condição social não é vista como intrínseca ao espírito humano e sim um instrumento para uma utilidade evolutiva transitória: o nascimento a coloca nela e a morte a retira dela.
O codificador do espiritismo não tinha conhecimento sociológico, antropológico ou de ciência política. E não o tinha por uma razão muito simples: porque esse conhecimento praticamente inexistia na época dele. Mas, não somente por isso: também porque ele percebia o fenômeno mediúnico ancorado na ideia de sobrevivência individual do espírito, razão pela qual ele concebeu o espiritismo como uma ciência psíquica com consequências morais.
O individualismo parte de ou leva a um conceito falso de sociedade. A partir dessa concepção, sociedade é a soma dos indivíduos. À luz das ciências humanas e sociais contemporâneas, essa visão constitui um erro. Se reunirmos várias pessoas estranhas umas às outras num mesmo lugar, não teremos aí uma sociedade ou um grupo social, mas só um ajuntamento de gente. Para que haja sociedade é preciso que haja uma linguagem comum, uma cultura compartilhada, um sentido conjunto de ações e visões. A sociedade então, é um conceito formado por categorias intersubjetivas e institucionalidades, e não simplesmente subjetivas.
E são essas categorias e conceitos intersubjetivos e institucionais que faltam ao sistema espírita de pensamento. É por isso que o espírita médio pensa que os problemas sociais são fruto do egoísmo, como ausência de virtude moral no coração das pessoas, e que a caridade pode solucionar esse problema; e que o sofrimento das classes despossuídas representa resultado de algo que essas pessoas fizeram no passado reencarnatório e por isso estão expiando. Não há, no espiritismo, conceitos sociais e políticos que permitam aos espíritas enxergarem e interpretarem a sociedade, em perspectiva espiritual. Eles olham e só enxergam indivíduos. E, ao fazê-lo, dedicam vidas inteiras a trabalhos de assistência social e espiritual que simplesmente mantêm o quadro terrível de desigualdade e injustiça da nossa sociedade. Importante observar que quem faz isso não são pessoas egoístas e inferiores, mas gente generosa e extremamente bem-intencionada, mas que age no limite daquilo que consegue entender.
Eis porque o espírita não sabe ainda pensar o espírito como sociedade. Não sabe pensar evolução como história. Não sabe pensar mediunidade como relação social ou política. Não sabe pensar desencarnação como movimento migratório. Não sabe pensar o mundo espiritual como organização social, nem as relações espirituais como um tipo de economia. O espírita só pensa o individual e, quando pensa a sociedade, acredita que seja apenas a somatória dos indivíduos.
Uma visão individualista do espírito impede que o espírita enxergue os conceitos relacionais como estruturantes da vida e da sociedade. Daí, eventos de poder tendem a ser percebidos como apanágios interiores ou íntimos do ser e usualmente classificados por critérios de moralidade. Um poderoso, em exercício, portanto, se torna um ser ora “generoso” e “bom”, ora “egoísta” e “perverso”, obscurecendo os contextos que fazem tanto democratas, quanto autocratas agirem, em função dos interesses que os cercam. E, pior ainda, obnubilam completamente a possibilidade de percepção de jogos de poder nos âmbitos espirituais da vida. A ingenuidade psicologizante é uma das maiores fragilidades do pensamento espírita.
Os fundamentos em Kardec para pensar a sociedade são individualistas, positivas e moralistas. Pretender seguir com Kardec nesses pontos é acorrentar o espiritismo num modo de pensar pretersociológico, isto é, anterior ao desenvolvimento das ciências sociais, a não ser que façamos como fazem alguns hermeneutas da Bíblia: pinçar trechos de Kardec para produzir interpretações que concluam o que ele não disse nem jamais quis dizer… No debate que propomos, a pretensão não é essa, e sim a de ler Kardec sem a ilusão da fidelidade doutrinária. Isto é, lê-lo, contextualizá-lo, identificar as lacunas e fragilidades em face do pensamento social contemporâneo e partir para a atualização, propondo novos conceitos e novas formas de pensar, correndo, claro, o risco de errar também. Mas, nesse sentido, confiando que é melhor errar tentando acertar do que permanecendo em equívocos do passado.
É por esta razão que a construção de uma teoria social espírita contemporânea constitui uma atualização de bases conceituais. Não há como trabalhar o conceito de sociedade em Kardec, sem reformulá-lo. Não se trata de uma atualização linear, simplesmente acumulativa, e sim uma atualização conceitual, reformulativa.
A teoria espírita, tal como está posta, a partir dos textos de Kardec e dos espíritos referendados no movimento tradicional, não dá suporte para uma visão social. Portanto, para que isso se altere, é preciso alterar o pensamento espírita, o modo espírita de ver o mundo e o ser humano.
Com essa crítica ao individualismo, não se quer, evidentemente, negar a existência e a relevância do indivíduo, no processo social e histórico. Não se pode recusar a capacidade do espírito, concebido como individualidade, de produzir sentido e até de modificar a história e a sociedade. Entretanto, ao mesmo tempo, não se pode falar em “autonomia” do ser, no sentido individual do ser, pela simples razão de que não existe um indivíduo, mesmo com todas essas capacidades, que não esteja mergulhado em um contexto social e histórico do qual retira o substrato do que vai pensar, sentir e fazer.
A questão, nesse ponto, não é nem a “influência” do meio sobre os indivíduos, nem a “influência” dos indivíduos sobre o meio. A questão de verdade é que, efetivamente, não há separação entre indivíduo e sociedade. Não existe um lugar onde o indivíduo termina para começar a sociedade, nem vice-versa (essa pergunta, que aliás fundou uma disciplina científica, a psicologia social, é, na verdade, uma falsa pergunta). Todo indivíduo é social em tudo; e, ao mesmo tempo, toda sociedade se movimenta por ações individuais.
Uma sociedade não é a soma dos indivíduos, uma sociedade é um todo maior do que a soma dos indivíduos que a compõem. E é por isso que os indivíduos morrem e a sociedade continua, os autores se vão e a cultura permanece, como se tivesse vida própria. Uma sociedade é uma cultura, uma economia e uma rede de relações dos quais os indivíduos são os vórtices, os nós.
Vale a pena pensar esse trocadilho: “nós somos os nós de uma rede”. Cada um de nós é um nó dessa rede imensa, com a diferença de que os nós de uma rede comum não têm consciência, mas os seres humanos têm. Somos e nos sentimos como indivíduos, mas vivemos conectados uns aos outros e a cultura que é produzida dessas conexões é o que, inclusive, torna possível que nos enxerguemos como indivíduos, que nos vejamos como pertencentes a grupos. Enxergar a si próprio e definir-se – o que a antropologia chama de “identidade” e a psicologia social interacionista chama de “self” – é algo aprendido por imitação dos nossos pais, dos nossos familiares, dos grupos dos quais fazemos parte e daquilo que aprendemos sobre as regras sociais, sobre a história e as tradições nas quais somos imersos.
Então, do que decorre isso? Que nós temos, sim, escolhas, mas essas escolhas são socialmente estabelecidas ou, pelo menos, limitadas. O próprio espiritismo, por exemplo, como um sistema de ideias, não foi inventado por nenhum de nós, e determina os assuntos que conversaremos e, inclusive, as perguntas que iremos fazer. Claro que podemos ir além dele, e parece que é o que estamos fazendo com este trabalho. Mas, só vamos além dele até um certo ponto: aquele em que a cultura em que estamos imersos nos permite avançar, cultura essa que inclui nossas experiências, nosso conhecimento, nossa fé, nossa moralidade, nossos referenciais simbólicos, e inclusive o contexto do movimento espírita hoje. E isso não é porque escolhemos assim, e sim porque não há como ser diferente, sem deixarmos se ser os seres humanos que somos.
A superação do individualismo é, então, a primeira tarefa de um pensamento social espírita consistente e atualizado, em relação ao conhecimento científico contemporâneo. Com isso, abre-se o pensamento espiritualista para a crítica das relações, da história e das posições sociais e políticas, principalmente as que signifiquem reprodução do preconceito e persistência dos efeitos dogmáticos e ritualizantes decorrentes do processo de institucionalização.
1- Denomino “institucionalização sistêmica” ao processo de ritualização das práticas e dogmatização dos conteúdos, que as religiões sofrem, decorrentes das lutas que levam à sua igrejificação, quando o “sacerdote”, administrador dos bens da fé, passa a imperar e controlar os “profetas” ou as “profecias”, que, de ordinário, deram início ao movimento. No espiritismo brasileiro, a démarche do processo de institucionalização sistêmica deu-se a partir do “pacto áureo” e as políticas de “unificação”, que consolidaram a transformação de Kardec em um cânone dogmático e definidor da própria identidade espírita, segregaram a mediunidade a reuniões fechadas e extremamente ritualizadas, com acesso apenas aos iniciados, e expulsaram as ritualidades que não se conformassem às dinâmicas referendadas pelas instituições federativas controladas pela FEB, especialmente as que se articulassem com as culturas negras.
Imagem de Brian Merrill por Pixabay
Me perdoem a ignorância, mas acredito que há alguns trabalhos que devem ser realizados por nós, encarnados. Não podemos esperar que os espíritos façam as lições que cabem a nós.