Kardec, pensamentos e diálogos, por Nelson Santos

Tempo de leitura: 6 minutos

Nelson Santos

Imagem de Gerd Altmann por Pixabay

Diante do arcabouço livre pensador, laico, humanista, progressivo e progressista legado por Kardec, como manter diálogos possíveis com o espiritismo-religião, representado pela maioria dos grupos e instituições e seus expoentes?

Introdução

Os ventos iluministas levavam o secularismo e os ideais revolucionários ao protagonismo de uma nova ordem social, institucional e civil, redefinindo os conceitos de cidadania. Um novo arranjo no qual os privilégios derivados do nascimento e do poder religioso não existissem como fatores determinantes, impulsionando, assim, um ideário libertador, igualitário e fraterno no seio da sociedade. Para tanto, buscaram firmar uma ética republicana e democrática como o motor para as reformas necessárias para a construção de um novo mundo, respirando novos ares, em que governos autocráticos e monárquicos bem como, instituições eclesiásticas perderiam sua dominância em face da pujança reformadora e laica.

Em França, os ideias da Revolução de 1789 expuseram que a necessária reconstrução não podia ser deduzida somente no arranjo governamental ou apenas nas estruturas sociais e nos conflitos de classe. A reconstrução haveria de apelar para o domínio do imagético e do discursivo, fundamentado, principalmente, no ensino laico, que causou um embate constante entre a igreja católica que se considerava legitimista e a República, que apostava no predomínio da razão.

A incipiente República francesa sofreu, já em 1801 um revés em seu ideal laico, com a concordata entre o primeiro-cônsul Napoleão Bonaparte e o Papa Pio VII estabelecendo o catolicismo como como a religião da maioria dos franceses, embora não oficial, assim como abarcando, ainda, o protestantismo e o judaísmo. Isto favoreceu o domínio eclesiástico no ensino formal. Depois, Napoleão, já como o primeiro presidente da segunda República, insatisfeito com a impossibilidade de reeleição, organizou, em 1851, um golpe, para estabelecer o segundo império, ferindo os ideias democráticos. Contudo, tais ideais permaneceram vívidos bem como a defesa da laicidade e continuaram a permear as premissas ideológicas e práticas dos livres-pensadores.

As raízes laicas e democráticas em Kardec

Em meio à essa efervescência social e filosófica nasce, em França, pelas mãos de Rivail-Kardec, no ano de 1857, “O livro dos Espíritos”, a pedra angular da Filosofia Espiritualista. A ela seguiram-se as demais obras, formando um amplo campo de estudo e experimentação, em seu derredor, onde é nítido apreciar a inquestionável laicidade do Espiritismo.

Seja pela negativa peremptória de Kardec do caráter de ser o Espiritismo uma religião, embasada no conceito de ciência de observação – comparativa, metodológica, racional e lógica – na abordagem dos fenômenos espirituais, bem como pelo eminente componente filosófico – alicerçado no estudo e no desenvolvimento teórico – a Doutrina dos Espíritos surgiu como uma abordagem da análise e da aplicação desses conhecimentos nas relações interexistenciais, entre o ser e o mundo, entre os indivíduos e entre os Espíritos e Deus, notadamente com ênfase aos aspectos morais correlatos.

Ao delimitar o campo de atuação, Kardec firma a coesão harmônica de um sistema de conhecimentos teóricos e princípios que fundamentam onde o Espiritismo, conforme destacado em “O que é o Espiritismo” [1]:
“O Espiritismo é, ao mesmo tempo, uma ciência de observação e uma doutrina filosófica. Como ciência prática ele consiste nas relações que se estabelecem entre nós e os Espíritos; como filosofia, compreende todas as consequências morais que dimanam dessas mesmas relações”.

Sustenta Kardec, ainda, na mesma obra, que as reflexões pelas experimentações científicas deslocariam o sobrenatural e os mitos para o conhecimento racional [1]:
“[…] o Espiritismo repousa em princípios independentes da questão dogmática”.

E, complementa [1]:
“[…] o Espiritismo, depois de se tornar conhecido, esclareceu grande número de problemas, até certa altura insolúveis ou mal compreendidos. O seu verdadeiro caráter é o de uma ciência e não de uma religião”.

Kardec deixa claro, então, que o Espiritismo nasceu com uma proposta laica, sustentando que os fenômenos e todas as coisas devem ser analisados a partir da ciência, da lógica e da razão e não devem ser influenciados por nenhuma tradição, autoridade ou qualquer dogma. Deve haver, portanto, na atividade espírita, o livre pensar e a autonomia, como exposto na “Revue Spirite” de fevereiro de 1867, no artigo “Livre pensamento e livre consciência” [2]:
“Em sua concepção mais larga, o livre pensamento significa livre exame, liberdade de consciência, fé raciocinada. Ele simboliza a emancipação intelectual, a independência moral, complemento da independência física; ele não quer mais nem escravos do pensamento nem do corpo, porque o que caracteriza o livre pensador é que ele pensa por si mesmo e não pelos outros; em outros termos, sua opinião lhe é própria. Assim, pode haver livres pensadores em todas as opiniões e em todas as crenças. Neste sentido, o livre pensamento eleva a dignidade do homem; dela faz um ser ativo e inteligente, em vez de uma máquina de crer”.

Obviamente, não há laicidade sem democracia e nem democracia sem laicidade, sendo que, na extensa obra de Kardec, o conceito de democracia se faz presente e evidente, nos caracteres da justiça social – a igualdade, a fraternidade e a liberdade, e os princípios, valores e ideais que a norteiam. Deste modo, para além das instruções dos Espíritos, o espírita deve assumir destacada eloquência e compromisso ativo na defesa de uma sociedade em que tais pilares sejam plenos e efetivos, no que resultaria em norma de conduta e base para as instituições sociais.

Referido discurso, no pensamento kardeciano, se acentua por meio de diversas inserções ao longo de suas trinta e duas obras, no que se constata uma pujante versação sobre democracia, política e ação social. Estes três elementos, conjugados e sintonizados no exercício do livre pensamento permite alcançar os subsídios para que a sociedade se estruture, organize e funcione em efetiva justiça social, para a obtenção real do bem comum.

Exemplificativamente, na resposta à questão 917, de “O livro dos Espíritos”, Fénelon pondera [3]:
“[…] Que o princípio da caridade e da fraternidade seja a base às instituições sociais, das relações legais de povo para povo e de homem para homem, e este pensará menos em si mesmo quando vir que os outros o fazem; sofrerá assim a influência moralizadora do exemplo e do contato”.

Kardec de fato possuía a marca dos livres pensadores: contestador, revolucionário, dotado de consciência social, contrapondo-se a duas grandes instituições sociais – o governo imperial e a igreja. Em relação a tais entes, sempre questionou a autocracia de um e o dogmatismo do outra, já que ambos cerceavam o livre pensamento e a autonomia que deveriam formar e nortear todo ser humano. Veja-se que um dos belos e memoráveis artigos de Kardec sobre justiça social, que é o objetivo da democracia, foi embasado no lema da Revolução Francesa [4]:
“Liberdade, igualdade, fraternidade, estas três palavras são, por si sós, o programa de toda uma ordem social, que realizaria o progresso mais absoluto da Humanidade, se os princípios que representam pudessem receber sua inteira aplicação”.

Haverá diálogos possíveis?
O Espiritismo surgiu, em terras brasileiras, desde o princípio, com impregnação do dogmatismo religioso, relegando a papéis coadjuvantes a Filosofia e a Ciência Espírita. Numa crescente sacralização, firmada em uma vasta produção intelectual e literária de obras mediúnicas e de produções de escritores encarnado, se baseou no argumento de autoridade indiscutível, abundante em conceitos arcaicos e conservadores, como se não houvesse o progresso das ideias e das ciências. Para o meio espírita, foi cunhada e se estabeleceu a expressão de perfeição e imutabilidade de conceitos, como se tudo o que seja proveniente dos Espíritos fosse uma verdade absoluta, em detrimento do estudo e da pesquisa, lógico-racionais. Em paralelo e complementarmente, restou consolidada a aceitação inquestionável dos preceitos e textos puramente evangélicos – por vezes proféticos – advindos de escritores, palestrantes e dirigentes espíritas.

Não há, em geral, nas instituições e grupos espíritas o acurado estudo do ensino dos Espíritos e do pensamento kardeciano, inclusive para aferir se determinadas colocações permanecem atuais ou se correspondem à realidade espiritual. Em particular, estagnou-se na interpretação evangélica de “A Gênese – Os milagres e as predições conforme o Espiritismo”, bem como se intensificou a reprodução de mensagens e obras mediúnicas que parecem advindas de Espíritos retrógrados, cujo desenvolvimento (espiritual) parece ter ficado retido no período anterior ao aparecimento, enquanto doutrina, do Espiritismo, principalmente em face da retórica e dos conceitos nelas expressos. Para além disso, a porção majoritária, quase total, desconhece os pensadores espíritas, tais como: Léon Denis, Gabriel Delanne, Gustavo Geley, Ernesto Bozzano, Amalia Domingo Soler, Quintín López Gómez, Oliver Lodge, Cosme Mariño, Manuel Porteiro, Humberto Mariotti, Afonso Angeli Torteroli, Carlos Imbassahy, Herculano Pires, Deolindo Amorim, David Grossvater, entre outros.

Conclusivamente, é de se perguntar: diante do arcabouço livre pensador, laico, humanista, progressivo e progressista legado por Kardec, como manter diálogos possíveis com o espiritismo-religião, representado pela maioria dos grupos e instituições e seus expoentes? Como construir efetivas pontes e espaços de dialógica e dialética, se este último permanece inerte, distante dos debates e construções filosóficas e científicas, considerando-as elitistas ou elitizantes, bom como perante os avanços das ciências, por entenderem que o Espiritismo daria a última palavra? Será que a reticência ou a intransigência em progredir, enquanto movimento e práticas, dará o fado ao Espiritismo brasileiro, consolidando-a tão-somente como mais uma seita cristã, permanecendo, este, adormecido em berço esplêndido ou haverá, no meio espírita, o toque de despertar?

O tempo – e o conjunto de nossas ações – dirá…

NOTAS

[1] KARDEC, Allan. “O que é o Espiritismo”. Trad. Salvador Gentile. 75. Ed. Araras: IDE, 2009.
[2] ____________. “Revue Spirite”. Jornal de Estudos Psicológicos. Ano X. 1867. Trad. Júlio de Abreu Filho. São Paulo. Edicel, 2018
[3] ____________, “O livro dos Espíritos”. Trad. José Herculano Pires. 86. Ed. São Paulo: LAKE, 2009.
[4] ____________. “Obras Póstumas”. Trad. João Teixeira de Paula. 14. Ed. São Paulo: LAKE, 2007.

Written by 

Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

2 thoughts on “Kardec, pensamentos e diálogos, por Nelson Santos

  1. Importante reflexão para o momento que vivemos com tantas confusões, para justificar o que não se justifica a religião se usa. As decisões caem na pauta política com ares de moralismo afastando o questionamento racional e laico

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.