Livres e Iguais, por Paulo Dias

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Paulo Dias

A diversidade das aptidões humanas vem do grau de PROGRESSO a que tenha chegado o Espírito encarnado naquele momento e não deriva da natureza íntima da sua criação.

“Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos” (Declaração Universal dos Direitos do Homem).

Igualdade, tema vasto, controverso. Que o Espiritismo trata nas Leis Morais, no capítulo IX, de “O livro dos Espíritos”, a Lei de Igualdade, do qual este artigo faz a revisão de literatura.

Gunnar Myrdal, em 1974, divide com Hayek em 1974 o Prêmio Nobel de Economia. Dá importante contributo à Economia científica com sua pesquisa sobre a interrelação de processos econômicos, sociais, políticos. Interessa ressaltar que ele, em sua intensa vida, interliga temas: economia, sociedade, racismo, política, desenvolvimento, e. g., o seu conhecido “Um Dilema Americano: o problema do Negro e a Democracia Moderna”, texto de forte viés multidisciplinar, de grande impacto social. Nele, ele revê fatores institucionais e demográficos: em economia, política; história, educação e saúde; contribuiu para a Suprema Corte declarar inconstitucional a segregação racial em instituições públicas nos EUA.

Myrdal atuou ainda como Secretário Executivo da Comissão Econômica para a Europa da ONU, tendo estudado profundamente o subdesenvolvimento, sobretudo na Ásia, e suas causas. Sua teoria sobre regiões subdesenvolvidas nasce da inquietação em ver que há grande cópia de países pobres no mundo face ao pequeno número de países ricos. A teoria econômica preconiza: as forças de mercado, estimuladas por retornos desiguais, equilibram a economia mundial. Myrdal argumenta: as mesmas forças de mercado exercem efeito regressivo que torna o país rico mais rico, e o pobre mais pobre. Ou, a desigualdade econômica tende a aumentar a pobreza, não a reduzi-la.

Racismo.
Aproveitando de seus relevantes estudos acerca da questão racial americana, Myrdal exemplifica a causação cumulativa com o problema da pobreza concentrada no povo negro. A realidade da pobreza e das piores condições de vida dessa parcela dessa população gera preconceito por parte da parcela branca, o que limita o acesso do negro ao mercado de trabalho; na resultante, reforça ainda mais sua condição de pobreza, fechando o ciclo vicioso cumulativo de mais pobreza, mais preconceito. A mesma causação cumulativa explica ainda a diferença nos níveis de desenvolvimento entre os países. Independente do motivo pelo qual um país tenha atingido nível de desenvolvimento acima dos demais, tão alto nível permite à economia desenvolvida potencializar ganhos. Então, um nível produtivo maior traz mais ganhos por economias de escala, ou possibilita reduzir o custo médio, ao se aumentar o nível de produção.

Em paralelo, a migração de mão-de-obra, capital e comércio reforçam ainda mais a disparidade no nível de desenvolvimento: o centro mais desenvolvido tem mais oportunidade de emprego, renda, lucros; a concentração da produção tende a realinhar o comércio, de tal modo que a disparidade no nível de desenvolvimento entre países gera efeito regressivo, que explica a ampliação do hiato entre estes. Myrdal apresenta ainda o conceito de ‘efeito propulsor’, responsável por reduzir o impacto de efeitos regressivos, por meio de maior disponibilidade de infraestrutura em transporte, comunicação e saúde para regiões atrasadas também. Nos termos do autor, “Em nenhuma circunstância os efeitos propulsores permitem estabelecer os pressupostos para análise do equilíbrio. Só o papel do Estado e a ação de instituições fortes possibilita tal efeito propulsor a mitigar os efeitos regressivos” (BARBER, 2008).

Igualdade natural.
Diante do Eterno, todos os homens são iguais. Sim, todos tendem ao mesmo fim. Deus fez Sua lei para todos: “Amar ao próximo”. As leis naturais submetem a si toda e qualquer pessoa: as leis são as mesmas para todos. Todos nascem dependentes por igual, acham-se sujeitos às mesmas dores; o corpo do rico e do pobre se destroem ambos. O Eterno a nenhum homem concede superioridade natural, nem pelo nascimento, nem pela morte: todos, a Seus olhos, são iguais (“O livro dos Espíritos”, item 803).

Desigualdade das faculdades.
As diversas funções da mente conforme a linguagem psicológica do séc. XIX (anos 1800), ainda sem a Psicanálise, no tempo de Kardec eram a ‘psicologia das faculdades’; hoje, temos a Psicologia Humanista e o conceito de ‘experiência’ (a soma das vivências cf. abaixo). Mesmo as pessoas sendo iguais em face da lei natural, as aptidões ou faculdades variam para cada qual: a diversidade das aptidões humanas deriva, então, do grau de perfeição a que tenha chegado a alma; o Eterno criou todos os Espíritos iguais entre si; mas, cada um, a seu tempo, há feito “Maior ou menor soma de aquisições” e, por conseguinte, peculiar à diversidade dos graus da EXPERIÊNCIA obtida por cada alma, e da VONTADE (livre-arbítrio) com que opera. Um se aperfeiçoa mais rapidamente do que outro, o que lhes dá faculdades diversas. Necessária é a variedade de aptidões, a fim de que cada um possa concorrer à execução do Desígnio Providencial, no limite do desenvolvimento de suas forças físicas e intelectuais. O que um não faz, outro fará. Assim, cada qual tem seu papel útil a desempenhar.

Ademais, todos os mundos são solidários entre si, pois necessário é que habitantes dos mundos superiores (na sua maioria, criados antes do nosso), venham para cá (Terra), a nos dar o exemplo (itens 361 e 804, de “O livro dos Espíritos”). Passando de mundo superior a outro inferior, o Espírito conserva na íntegra as faculdades adquiridas — e todos hão de adquiri-las todas (item 540 do mesmo livro). Sim, o progresso não retroage. O Espírito livre no estado de desencarnado pode escolher envoltório mais bruto, posição mais precária do que antes, mas, tudo “Para lhe servir de ensino e ajudá-lo a progredir”. Como tal, a diversidade das aptidões humanas vem do grau de PROGRESSO a que tenha chegado o Espírito encarnado naquele momento e não deriva da natureza íntima da sua criação. O Eterno, pois, não criou faculdades desiguais; mas, permite que Espíritos em graus diversos de singular desenvolvimento estejam em contato uns com os outros: o mais adiantado auxilia o progresso do menos; e, também, os homens, necessitando um do outro, compreendem a lei de amor que os deve unir (conforme “O livro dos Espíritos”, itens 180 e 805).

Desigualdade social e da riqueza.
A disparidade das condições sociais, entretanto — que nada tem a ver com as aptidões desiguais — não é lei da natureza. Não! É obra exclusiva do homem e não de Deus, de fato, a miséria é fabricada (Myrdal, acima). Desigualdade, pois, que um dia desaparecerá, “Quando egoísmo e orgulho deixarem de predominar” (novamente, “O livro dos Espíritos”, item 806). Só o Espírito é mais ou menos puro, mas isto independe do status social. Matéria atrai matéria na razão direta da massa, e na razão inversa do quadrado da distância: quanto mais massa, mais atração; quanto mais perto, mais atração. Ação atrai reação na razão direta da intensidade e na razão inversa da inércia quanto ao ato cometido: quem abusa de status social superior, para oprimir o fraco em proveito próprio, renascerá numa existência em que há de sofrer tudo o que tiver feito sofrer aos outros. Será, a seu turno, oprimido (itens 684 e 807, da mesma obra).

A desigualdade das riquezas, então, parece vir das faculdades diversificadas, o famoso ‘tino comercial’, em virtude do que um dispõe de mais meios de adquirir bens do que outro: mas, há também “Velhacaria e roubo” (conforme o item 808, de “O livro dos Espíritos”) e até, bem mais do que há ‘perspicácia’ para os negócios. Vale relembrar: “O capitalismo será bom para todos, ou não será bom para ninguém” (Adam Smith, Riqueza das Nações). Passar a perna no ‘concorrente’ não é esperteza e sim usar cascos e o modo melhor de todos empobrecerem em definitivo é um boicotar o outro.

Social-democracia.
O ideal político compreende: ‘liberdade e igualdade’; direito de propriedade; liberdades civis; democracia representativa; eleições regulares e livres; multipartidarismo. Em Economia, Keynes; interesse social, mitigação de problemas do capitalismo (crises periódicas, alto desemprego). Busca o Estado de Bem-Estar Social (horizonte político e econômico em que o governo, com papel central no organismo econômico, visa promover o progresso social e criar redes de segurança ao cidadão ‘do berço ao túmulo’, a vida toda; o Estado rege a socioeconomia do país). A social-democracia propõe benefícios sociais universais e extensa regulação econômica e o liberalismo apoia benefícios sociais pontuais, liberdade econômica mais ampla, ainda assim, nos fins do século XX, o flerte da social-democracia e do trabalhismo com os neoliberais origina a chamada “Terceira Via” e gera, além de grande disputa, uma grave crise de identidade entre membros e eleitores desses partidos; mas, a social-democracia se distingue do liberalismo econômico [vide politize.com.br/social-democracia-o-que-e/].

Socialismo.
Por impossível, nunca houve igualdade absoluta das riquezas, nem há de haver, porque a isso se opõe “A diversidade das faculdades e dos caracteres” (item 811, de “O livro dos Espíritos”). O pensamento de ser este o remédio aos males da sociedade é “SISTEMA” ou, teimosia, pensamento limitado, estreito: a sonhada igualdade “Seria a curto prazo desfeita pela força das coisas” e o egoísmo é a verdadeira “Chaga social” (“O livro dos Espíritos”, item 811). Se há de lembrar, ‘capitalismo’ é fase histórica antes de alternativa econômica.

Kardec e Marx.
Tudo se resume em não jogar fora o bebê junto com a água da bacia, pois Kardec é 98% de PURO Platão e, no fim, a doutrina social de Kardec é a MESMA de Marx, pelas vias de Platão; Marx BEM compreendido diz, dentro do espírito platónico, que o capitalismo será superado por se tornar insuficiente. Trocando capitalismo por “Egoísmo”, temos a fala de Kardec: segundo ele como se sabe o egoísmo engendra sistemas económicos injustos, pois resulta do progresso humano incipiente… Aliás não precisava, pois o principal autor da Economia liberal, Smith, diz da SOLIDARIEDADE que deve reger o capitalismo ‘para todos’. Ora, Adam Smith – quem diria? – é comunista. Chamem a polícia!

Trabalho e profissões.
Por ser impossível a igualdade das riquezas, o mesmo não se dá com o bem-estar. Não, decerto; mas é relativo, este; todos poderiam dele gozar, se se entendessem convenientemente, pois o verdadeiro bem-estar consiste em cada um usar o seu tempo como lhe apraz, e não na execução de trabalho pelo qual nenhum gosto sinta. Como cada um tem aptidão diversa, nenhum trabalho útil ficaria por fazer; ou: “De cada um segundo a sua capacidade, a cada um segundo a sua necessidade”. Em tudo há equilíbrio, que o homem perturba (item 812, de “O livro dos Espíritos”). Parece o pobre responder por sua pobreza, o famoso ‘pobre preguiçoso’, caído à privação e miséria por culpa SUA (???), mas, deveras, cabe à sociedade responder por isso: também este é um mecanismo social: “Os homens se entenderão quando praticarem a lei de justiça” (itens 685 e 813, de “O livro dos Espíritos”).

Doutrina Social Espírita.
A Doutrina Social Espírita ensina: “O laicismo, o humanismo, o livre pensamento, o cosmopolitismo”, a ecologia, a democracia representativa, a imprensa e a expressão livres, a pluralidade política, a separação de poderes, “O sufrágio universal e direto, a alternância no exercício do poder, o necessário equilíbrio entre Estado e Mercado”, a livre economia, a justiça social e a equidade como objetivos prioritários, a coexistência harmoniosa entre a educação pública e privada, “O pleno respeito pela diversidade humana em todas as suas expressões nacionais, étnicas ou sexuais” e a resolução pacífica de conflitos internacionais (Jon Aizpúrua).

As provas da riqueza e da miséria.
O Eterno a uns concede riquezas, poder; a outros, miséria, “Para experimentá-los” de modo diverso. Ademais, o Espírito mesmo escolhe suas provas apesar de nelas sucumbir com frequência (item 814, de “O livro dos Espíritos”). As duas provas são ambas “Terríveis”: a riqueza (há honrosas exceções) faz o homem egoísta, orgulhoso e insaciável, mas, há miséria PARA QUE isto ocorra, “A miséria provoca as queixas contra a Providência; a riqueza incita a todos os excessos” (item 815, da mesma obra). Os dois extremos da escala social — a opulência desmedida e a miséria são fabricados: “A alta posição do homem neste mundo e a autoridade sobre o semelhante são provas tão grandes e tão escorregadias como a miséria (…) com a riqueza, suas necessidades aumentam e ele nunca julga possuir o bastante para si (…) quanto mais rico e poderoso é ele, tanto mais deveres tem a cumprir e tanto mais abundantes são os meios de que dispõe para fazer o bem e o mal. Deus experimenta o pobre pela resignação e o rico pelo uso de seus bens, e seu poder. Riqueza e poder suscitam toda paixão que nos prende à matéria e nos afasta da perfeição espiritual” (itens 266 e 816, de “O livro dos Espíritos”).

Igualdade dos direitos do homem e da mulher.
Homem e mulher, iguais perante Deus, têm os mesmos direitos; o Eterno outorga a ambos a inteligência do bem e do mal, a FACULDADE de progredir (“O livro dos Espíritos”, item 817). A inferioridade social da mulher resulta do ‘machismo’, do “Predomínio injusto e cruel” que o homem assume sobre ela; vem dos institutos sociais, do abuso da força sobre a fraqueza. Entre homens de pouca moral, a força faz o direito (item 818, da citada obra). A mulher é fisicamente mais fraca do que o homem, a fim de ter funções especiais; cabe a ambos o dever de ajuda mútua e suportar “As provas” da vida (item 819). A fraqueza física da mulher não a faz depender ‘por natureza’ (?) do homem: a força física do sexo masculino, o Eterno a concede “É para que proteja o outro”, a criança, a mulher, não para escravizá-los. Apropriou o organismo de cada ser às funções que lhe cabem. À mulher, deu força física menor, ao mesmo tempo, maior sensibilidade, apropriada à delicadeza das funções maternais e à fragilidade dos seres confiados aos seus cuidados (item 820). A Natureza destina à mulher e ao homem funções de igual valor e até maior na mulher, em geral quem ministra as primeiras noções da vida (item 821) — hoje em dia, na cultura ocidental muitos homens também cuidam dos filhos. Sendo iguais perante a lei de Deus, a lei humana deve, também, igualar as pessoas — o primeiro princípio de justiça é: “Fazer ao outro o que desejamos que nos façam”. A legislação, pois, a ser perfeita e justa, deve consagrar a igualdade dos direitos do homem e da mulher; dos direitos, sim; das funções, não. Preciso é cada um estar em seu lugar. Ocupem-se, homem e mulher, cada um segundo a sua aptidão. A lei humana, a ser equitativa, deve consagrar a igualdade de direitos do homem e da mulher. Todo privilégio concedido a um, a outro contraria o senso do justo. A emancipação da mulher segue o progresso da civilização. Sua escravização marcha de par com a barbaria. Só na biologia há sexos, ademais. O Espírito em si pode encarnar num e noutro, sob tal aspecto nada difere entre eles. Devem, pois, gozar dos mesmos direitos (item 822). Cabe aditar a questão do ‘generismo’ que parece vir da psicologia, mais do que do sexo físico.

Fontes:
AIZPÚRUA, Jon. A CEPA e a doutrina social do Espiritismo. Evolución. Revista. CIMA, 2018.
BARBER, W. Gunnar Myrdal. An Intellectual Biography. Houndmills: Palgrave Macmillan, 2008; apud Pedro Amaral.
SMITH, Adam. A riqueza das nações. 3. Ed. São Paulo: Nova Fronteira, 2017.

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

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