Porque “há quem veja, mas não observe e a diferença é clara”, parafraseando o personagem Sherlock Holmes
Júlia Schultz e Marcus Braga
Certa feita Sherlock Holmes disse: “O meu espírito rebela-se contra a estagnação. Deem-me problemas, muito trabalho, o mais complicado criptograma ou a mais intrincada análise e eu estarei no meu meio.”
Ao que parece os nossos Espíritos, caro amigo Holmes, têm certa sintonia. Também não aceitamos a estagnação. Nem nós, nem Kardec, que em toda a sua sagacidade, desejava que o Espiritismo pudesse progredir, indo para além do que ele havia descoberto.
E assim, com um pouco daquele espírito investigativo de Holmes, personagem do escritor espírita Conan Doyle, e com outro pouco do espírito crítico de Kardec, não necessariamente nesta mesma ordem, nasceu esta edição da Revista Harmonia, intitulada “Mais Evidências” que, em sete textos reacende ou incendeia, como preferir, os conformismos acerca da adulteração da obra de Allan Kardec.
Como abertura desta edição, Marcelo Henrique nos convida, no seu texto “A gênese de “A Gênese” a uma profunda reflexão acerca do direito moral e autoral desta obra, assim como de outra, anterior, “O Céu e o Inferno”, que foram, pois, desrespeitados após a morte de Kardec, quando ambas sofreram adulterações. O autor, tal como Sherlock Holmes, se pauta nos manuscritos de Kardec, nas datas em que ocorreram determinados acontecimentos, na investigação realizada “na fonte”, nos documentos oficiais das autoridades francesas, descartando suposições e se baseando em provas e contraprovas, para chegar às suas conclusões, convidando-nos, todos, a pensar acerca das mentiras que aceitamos e das verdades que rejeitamos, por vezes.
Neste caminho, Júlio Nogueira amplia as reflexões no texto “Alterações realizadas em “A Gênese” após a sucessão hereditária de Allan Kardec: Depósito legal e a alteração de conteúdo. Direito Moral e a garantia da integridade da obra”, em que resgata o recente acontecimento de 2018, no qual a pesquisadora Simoni Privato Goidanich obteve provas de que a obra “A Gênese” havia sido adulterada após o desencarne de Allan Kardec, de forma clandestina e, de lá para cá, tal situação teria trazido uma série de reviravoltas acerca do que se tinha como verdade, até então, bem como as consequências de tais investigações.
Mediante tantas informações, é inegável que ocorreram adulterações, e é neste sentido que Paulo Henrique de Figueiredo discorre “Sobre a quinta edição clandestina de 1869 de “A Gênese””, reforçando que, para preservar a memória de Kardec, assim como os seus direitos autorais, faz-se necessário que, aqueles que estão aqui, lutem por isto. Indo um pouco além, ele menciona haver outras informações e documentos acerca da adulteração, os quais estão sendo aos poucos traduzidos e divulgados, e que as cenas dos próximos capítulos estão por vir.
Para àqueles que estudam, a dúvida é salutar, nos leva à reflexão, a sair da zona de conforto e a aprender mais. Neste sentido, Marco Milani traz seu texto em que questiona: “Seria Kardec o autor das alterações contidas no Capítulo XVIII da 5ª edição de “A Gênese”?”. Ele revela relatos de um Kardec um tanto diferente daquele já conhecido ao longo das outras obras, que prezava pelo rigor metodológico, senso crítico e racional, para se comportar – como se observa na edição adulterada – como alguém com uma tendência mística e supersticiosa. O que teria acontecido? Milani convida a esta reflexão.
Um resgate histórico, desde a primeira publicação, que daria início ao que conhecemos hoje como espiritismo é feito no texto “Os efeitos das adulterações nas obras de Kardec”, de Denis Denisard, que começa em 18 de abril 1857 e segue até 31 de março de 1869, reforçando, mais uma vez, o homem de ciência que era Kardec, ainda que naquele tempo houvesse muitas limitações em termos de pesquisa se comparado aos dias de hoje. Alguém cético, estudioso, criterioso e que desejava que o Espiritismo pudesse progredir. Mas, quem imaginaria que, logo após a sua morte, a sua obra poderia ser criminosamente adulterada? Os efeitos das adulterações você confere lendo este artigo.
Para Wilson Garcia, “Provas confirmam que Kardec não fez as mudanças contidas na 5ª edição francesa”. Ou seja, sim, há quem acredite (?) que as mudanças vieram de Kardec e estas pessoas fazem o movimento contrário: o de querer deixar tudo como está. Porém, Garcia é enfático ao trazer fatos relativos a tal questão, bem como a postura dos órgãos oficiais do Espiritismo, nos levando a uma série de questionamentos e, inevitavelmente àquele antigo adágio que assevera que: “o pior cego é aquele que não quer ver”.
Mas, não se engane, não é de hoje que se tem revelações acerca das adulterações das obras de Kardec. Henri Sausse, que já não está entre nós desde 1928, manifestou a sua indignação por meio do texto “Uma infâmia”, pois comparou, naquela terceira década do século passado, os textos da primeira com a quinta edição de “A Gênese”, e lá constatou as adulterações que tiveram uma motivação criminosa, já que não vieram do autor.
Como de costume, a Revista Harmonia não se furta diante da necessidade de refletir sobre temas que são polêmicos e merecem ser discutidos. O debate é da essência do Espiritismo, uma prática salutar e que deve ser respeitosa e fundamentada, promovendo assim o engrandecimento de todos. Aliás, no Espiritismo, isso deveria ser elementar, meu caro Watson.
E é assim que, na contramão dos conformismos preferimos ficar com o que nos diz Sherlock Holmes: “É um erro grave formular teorias antes de conhecer os fatos. Sem querer, começamos a mudar os fatos para que se adaptem às teorias, em vez de formular teorias que se ajustem aos fatos.”.
Que comecem as investigações! Ou melhor, a leitura e as reflexões!
Imagem de Mohamed Hassan por Pixabay
Os textos da edição
Sobre a quinta edição clandestina de 1869 de “A Gênese”, por Paulo Henrique de Figueiredo
Os efeitos das Adulterações nas Obras de Kardec Denis Denisard
Provas confirmam que Kardec não fez as mudanças contidas na 5ª edição francesa, por Wilson Garcia