Nota do autor – Entrevista publicada em 2011 na revista NovaE e nos portais GGN e Nova Era. Título original – O hacker espírita – postura não-religiosa é o progresso do Espiritismo, diz estudioso espírita. No aniversário de 7 anos do ECK, é essencial conhecer o pensamento de seu fundador antes da criação do grupo.
Por Manoel Fernandes Neto
Quem ainda lembra do e-mail distribuído pela Federação Espírita Brasileira, condenando o aborto no calor de uma campanha eleitoral radicalizada por setores ultraconservadores, liderados pelo Papa Católico, talvez não imagine que dentro do mesmo movimento espírita possam existir vozes coerentes com um tempo de diálogo, tolerância e democracia.
Marcelo Henrique é uma das mais lúcidas expressões do que se convencionou chamar de movimento espírita. Não somente o movimento capitaneado pela FEB, com fortes matizes religiosos, mas também por outras organizações representativas, como CEI, CEPA, além de tendências e segmentos menores arraigados no Brasil e no mundo.
Com certeza, esta descentralização da filosofia codificada por Allan Kardec estremece dirigentes e espíritas ainda apegados à letra, a uma “religião espírita formal”, cada vez mais convencional. Mas que não está na raiz da doutrina.
Jornalista, Graduado em Direito e em Administração, tendo Mestrado em Ciência Jurídica, cursado Doutorado em Direito, e está cursando Doutorado em Administração. Foi gestor da Associação Brasileira dos Divulgadores Espíritas (ABRADE) por mais de uma década e atuou em inúmeros periódicos impressos e eletrônicos. Marcelo Henrique é consciente do que significa o mundo em rede e este momento de propagação desenfreada do Espiritismo. Prefere, sim, o protagonismo da disseminação contra a centralização. Digamos assim, Marcelo Henrique é um hacker dentro do movimento.
Veja você mesmo:
“Que tal, então, imaginarmos que cada um de nós é parte integrante e responsável pela disseminação do conhecimento? Que tal envolver as pessoas, diretamente, na tarefa de perpetuação das informações de natureza espiritual?”
Marcelo é assim – procura não se intimidar com as perguntas, mesmo as desta entrevista, com provocações sadias sobre temas polêmicos, em busca de ângulos refrigerados sobre antigos temas, como o aborto: – “Quando um espírita se dispõe a ‘conversar’ sobre aborto, limita-se aos conceitos relativos ao ‘dom da vida’ ou similares, e utiliza alguns trechos das obras fundamentais para dizer ‘sim’ ou ‘não’. Não se permite avançar na discussão de situações.”
Posição laica do Espiritismo: – “Ao abandonar a postura de ‘seita’ ou ‘crença’, entendem os laicos estarem abertos aos diálogos sociais e com todas as filosofias, desprovidos de preconceitos”.
Ou, ainda, sobre Jesus: – “o chamo carinhosamente de ‘Magrão’. Um guia, um modelo, mas não o único”.
Nesta entrevista exclusiva, Marcelo responde pacientemente as nossas questões sem, em nenhum momento, esquecer do verdadeiro papel de Allan Kardec, pouco compreendido dentro e fora do movimento.
“O Codificador jamais pretendeu ‘institucionalizar’ a Doutrina; jamais advogou a limitação ao livre-pensar espírita, dando completa liberdade aos adeptos de entenderem os princípios espíritas de acordo com sua condição evolutiva, sem saltos.”
Acompanhe a entrevista na íntegra.
Manoel Fernandes Neto – O que você achou da questão do aborto ser incluído no debate eleitoral presidencial, como dogma religioso, inclusive com posicionamento do Papa e mesmo da FEB, no calor da campanha?
Marcelo Henrique – O aborto é um tema de relevância social e de natureza pública e deve estar incluído na “ordem do dia” da modernidade brasileira. Não como mero “tópico” de um debate eleitoral, mas como política governamental, perpassando não só as prescrições legais e a normatização criminal (ou descriminalização, conforme o caso), mas alcançando elementos relacionados à saúde (física e psicológica), à assistência e à promoção da qualidade de vida para os cidadãos brasileiros, especialmente as cidadãs. Entendo, particularmente, como jurista espírita, que o debate até o momento é raso, limitado, pífio e lamentavelmente vinculado a questões de natureza essencialmente religiosa, quando possui outros contornos e caracteres que não podem estar subsumidos aos conceitos religiosos num Estado laico.
Os componentes de religiosidade, é bem verdade, são importantes e estão intrinsecamente ligados aos posicionamentos dos indivíduos, inclusive aqueles que têm responsabilidades e obrigações sociais como juízes, legisladores, advogados, especialistas em saúde pública, etc. Faço críticas ao movimento espírita que quando se dispõe a “conversar” sobre o aborto, limita-se aos conceitos relativos ao “dom da vida” ou similares e utiliza alguns trechos das obras básicas (e, sobretudo, respostas dos Espíritos, isoladamente consideradas), para dizer “sim” ou “não”. Não se permite avançar na discussão de situações, questões e contornos que não existiam ou não foram objeto de questionamento por parte do Codificador ou não foram suficientemente respondidos pelos Espíritos. E não está preocupado, nem um pouco, com a principal envolvida, a mulher, em seu componente bio-psíquico-espiritual.
Falando em “respostas dos Espíritos” muita gente acha que eles, os Espíritos, tiveram ou têm de responder todas as indagações humanas, como se prescrevessem a forma como devêssemos atuar na vida. A criação divina e o contexto espiritual-reencarnatório nos legaram um elemento fundamental, no contingente espiritual, que é o livre-arbítrio (e a responsabilidade dele decorrente) para que cada um de nós pudesse viver por si mesmo e evoluir. Há muitos espíritas “esperando” orientações espirituais para pautar os atos de sua vida e outros, lamentavelmente, que se posicionam como títeres, como se os Espíritos “administrassem” nossas vidas. Muito embora eles influam decisiva e marcantemente em nossa existência (corporal), ainda sim, é por sintonia espiritual e por vontade nossa que a eles nos ligamos, todos os dias.
Manoel Fernandes Neto – Na questão da defesa da vida que nos traz o Espiritismo, como incluir as milhares de mulheres de baixa renda que morrem anualmente no Brasil, vítimas de abortos clandestinos?
Marcelo Henrique – Eis aí um componente que não pode ser afastado do exame espírita do tema “aborto”. As pessoas se prendem à questão do ato em si e da “prescrição” do não matar como regra que remonta aos regramentos religiosos da antiguidade, entre os quais o decálogo mosaico. Outras filosofias e religiões do passado, igualmente, prescreviam a natureza ilícita do assassinato, em termos espirituais. Não podemos fechar os olhos para a realidade (brasileira e mundial) que não protege, ampara ou atende satisfatoriamente centenas de milhares de vítimas dos abortos clandestinos, muitos dos quais, além de ceifar a vida dos nascituros (que estão no ventre materno), dizimam mulheres, a grande maioria atendida em clínicas clandestinas sem o mínimo de condições de higiene e saúde.
O trabalho espírita, na Sociedade, precisa considerar todas as vertentes e contingências envolvidas e deve sair do “intramuros” com a participação efetiva dos espíritas em movimentos e instâncias sociais, entre as quais os conselhos (municipais, estaduais e federais) de saúde e assistência social, por exemplo. Vejo muita gente até imbuída de bons propósitos, repetindo chavões e trechos de obras espíritas, mas que não realizam nada em favor da real conscientização e completa problematização do aborto. Em contrapartida, alguns arregaçam as mangas e, ao invés de tratar o tema como de natureza “religiosa”, procuram engajar-se em movimentos que estão do lado da vida, mas que não hostilizam, discriminam ou, principalmente, julgam quem quer que seja. Por cinco anos, estive, com mais dois companheiros, representando o movimento espírita no Conselho Nacional de Saúde, responsável pela definição das políticas públicas nesta área. Foi possível, junto a variados representantes da sociedade, discutir pontos importantes que levaram à apresentação de proposições legislativas para tratar de importantes temas, inclusive a descriminalização da mulher, em relação ao aborto.
Manoel Fernandes Neto – Muitas casas espíritas ainda desenvolvem dogmas e costumes advindos de atavismos de outras religiões, tais como proibição de livros contendo análises críticas do movimento espírita, endeusamento de dirigentes e médiuns e uma administração vertical de departamentos, entre outros. Qual o caminho para mantermos uma casa espírita sintonizada com Kardec, acima de tudo?
Marcelo Henrique – As situações trazidas na pergunta são realmente realidade e constituem exemplos destacados das distorções cometidas “em nome” do Espiritismo ou tendo Kardec como “referência”, apenas nos discursos. São equívocos. Primeiro, porque o Codificador jamais pretendeu “institucionalizar” a Doutrina; segundo, porque jamais advogou a limitação do livre-pensar espírita, dando, ao contrário, completa liberdade aos adeptos de entenderem os princípios espíritas de acordo com sua condição evolutiva, sem saltos; terceiro, porque estabeleceu critérios de validação das comunicações mediúnicas que foram solenemente esquecidos pelos praticantes da filosofia espírita, que passaram a acreditar em qualquer texto ou livro, desde que assinado por uma respeitável personalidade e recebido mediunicamente por pessoas simples, desprovidas do interesse em angariar recursos da venda de livros ou, então, envolvendo-se com trabalhos sociais e filantrópicos. Ou seja, não é o conteúdo mas a natureza (mediúnica) e as virtudes morais ou o devotamento assistencial que é o mais importante, para os que assim pensam. E, para aqueles que dizem que é impossível repetir o método de Kardec, porque não somos “dignos” ou porque não temos o seu “nível de progresso”, isto não corresponde às orientações que ele mesmo legou aos espíritas daquele tempo e os das épocas subsequentes, que realizassem o estudo comparativo lógico-racional e continuassem a evocar as Inteligências Invisíveis. Mesmo que admitamos, com o passar do tempo e as evoluções tecnológicas, que conduziriam à adaptação do método, com as premissas de análise aprimoradas e desenvolvidas – o que, também, não ocorreu.
Então, em face da grande presença católica em nosso país e, de outra sorte, considerando o sincretismo afro-brasileiro, o Espiritismo enquanto movimento sofreu e sofre constantemente a influência de ambos, resultando daí a “dogmatização” de determinados ensinamentos, a “ritualização” nas instituições, a “hierarquização” de médiuns/dirigentes, mitificando-os e endeusando-os e, o que é pior, a atuação de órgãos federativos como “censores” ou “prescritores” de condutas, abonando ou desencorajando, validando ou descredenciando pessoas, obras, iniciativas, grupos, instituições ou movimentos. Isto tudo é lamentável, mas decorre da nossa condição de Espíritos errantes, aplicando ao movimento e às instituições visões ainda acanhadas e interpretações parciais.
Uma casa espírita sintonizada com Kardec é uma instituição onde as pessoas se conhecem, se respeitam, procuram conviver em harmonia e entender que as diferenças interpretativas não devem ser abominadas ou afastadas, mas, do contrário, fomentadas. Evidentemente, em termos administrativos, haverá diretrizes – definidas coletivamente e não pelos “donos de centro”, a serem respeitadas, em prol do grupo. Todavia que as decisões e deliberações sejam tomadas em consenso, em bases democráticas e que se prime pelo respeito ao pensamento do Codificador e suas balizas no trabalho e na ação espírita. Aliás, o próprio Kardec nos legou oportunos exemplos. Vide o capítulo “Constituição do Espiritismo” (em “Obras Póstumas”), o opúsculo “Instruções práticas sobre as manifestações espíritas” e diversos outros tópicos em “O que é o espiritismo”, obra, aliás, pouco valorizada pelos espíritas mas que, na própria conceituação de Kardec, deveria ser uma das primeiras a serem lidas e, depois, constantemente consultadas.
Manoel Fernandes Neto – Na sua opinião, como está o chamado “legado” de Kardec no âmbito da FEB?
Marcelo Henrique – A expressão “legado” tem um componente cultural e filosófico fortíssimo: significa que alguém recebeu de outrem a incumbência de preservação da memória, dos fundamentos, dos ensinamentos. Em linhas gerais, todo e qualquer estudioso espírita é um legatário da obra de Kardec, porquanto está firmemente interessado na continuidade e na progressividade do conhecimento espírita. Prefiro não “vincular” o “legado” a esta ou qualquer instituição, porque em nome delas, muito já foi feito em prejuízo da humanidade e do conhecimento espiritual ou transcendental: cruzadas, inquisições e outras intolerâncias. Sempre que se dá uma importância descomunal a uma entidade ou movimento, em função da imperfeição dos homens que as integram/constituem, é possível a ocorrência de abusos, incoerências, incompreensões.
Que tal, então, imaginarmos que cada um de nós é parte integrante e responsável pela disseminação do conhecimento? Que tal envolver as pessoas, diretamente, na tarefa de perpetuação das informações de natureza espiritual (não somente as que foram trazidas em face do trabalho pioneiro e meritório de Rivail, mas a continuidade das comunicações mediúnicas e a respeitabilidade advinda da condição de verdade, segundo determinadas premissas de análise)? O “legado” de Kardec perpassa a ação consciente e dedicada de todo aquele estudioso que compreende os efeitos da mensagem espírita em si e busca disseminá-lo, para que outras pessoas possam ter acesso a ele, modificando-se e buscando a felicidade.
Entendo, ainda, que FEB, CEPA, CEI e tantas outras instituições brasileiras ou mundiais, que arregimentam seguidores da filosofia espírita e realizam trabalhos específicos em prol da divulgação do Espiritismo têm o seu valor e importância. São constituídos, seguramente, por pessoas abnegadas e voluntárias, que amam o que fazem e que estão convencidas de estarem fazendo o melhor ao seu alcance. Isto é fundamental: dar oportunidade aos que desejam trabalhar e conviver, lado a lado, movimentos que se arregimentam em função das características pessoais dos indivíduos, sendo que cada um possa buscar o melhor lugar para trabalhar e conviver.
Manoel Fernandes Neto – Qual o real papel de Jesus no espiritismo?
Marcelo Henrique – Um papel considerável, como o dos demais avatares presentes na História da Humanidade. Há personagens com grandes lições e exemplos, não necessariamente vinculados a movimentos ditos religiosos. Certa feita fui convidado para uma “palestra especial” na maior instituição espírita da Grande Florianópolis, justamente para falar de Jesus, em pleno mês de dezembro. Com a liberdade que me foi dada para enquadrar o tema e atendendo à solicitação dos dirigentes (que não queriam uma palestra apenas “sobre o Natal” ou o nascimento de Jesus), preparei minha exposição e lhe dei o seguinte título/enquadramento: “Jesus: Deus ou Homem? Mito ou Verdade? Humano ou Agênere? Espírito Puro ou Superior?”, justamente para compreender as principais confusões que existem no movimento espírita (e, lamentavelmente, entre dirigentes e palestrantes) sobre a condição espiritual de Jesus e sua missão em nosso planeta.
Jesus é um homem formidável. Eu o alcunho, carinhosamente, de “Magrão”, buscando uma proximidade, como a que temos com um irmão mais velho, um tio ou um amigo de mais idade.
Gosto muito das descrições bastante realistas e “humanas” contidas na obra de J.J. Benítez (“Operação Cavalo de Tróia”) e Margaret George (“Madalena”) que apresentam uma visão de Jesus como homem com gostos e preferências, atitudes comuns aos homens de seu tempo e virtudes e atitudes compatíveis com um espírito ainda não totalmente perfeito, evoluído completamente, ou, como constaria da “Escala Espírita”, como Espírito “puro”. Este Jesus é que deveria ser o Jesus espírita, o das parábolas e exortações ao progresso pessoal e à superação de si mesmo, como nas frases a ele atribuídas: “Vós sois deuses, brilhe a vossa luz” ou “Tudo o que faço, vós também podeis fazer”, entre outras.
Considerar Jesus como um dos guias e modelos para a Humanidade, mas não o único, já que a tradução “usual” e conhecida da resposta à questão 625, de “O livro dos espíritos” está errada na maioria das edições. Fico com Herculano Pires que assim traduziu: “Vede Jesus”, permitindo que tenhamos a clara ideia de que muitos foram, são e serão os missionários a apresentar “dicas”, apontar “caminhos” e distribuir “conselhos” para todos os que estão “a caminho”. Este Jesus é quem eu conheço e com quem dialogo em pensamento.
Manoel Fernandes Neto – O que é Espiritismo laico e como ele está posicionado no Espiritismo?
Marcelo Henrique – A posição laica (minoritária no Espiritismo brasileiro e mundial) é uma forma não-religiosa de encarar os ensinamentos, a prática e o movimento espíritas. Ao abandonar a postura de “seita” ou “crença”, entendem os laicos estarem abertos aos diálogos sociais – inclusive com religiões e seitas – e, desprovidos de preconceitos (já que a religião tem, por si mesma, atavismos e ideias preconcebidas, relativas a questões de fé que não permitem “acordos” ou “meios-termos”). Assim, despindo-se do rótulo “religião” (que Kardec nunca atribuiu ao Espiritismo), podem interagir com qualquer filosofia presente no mundo e travar contatos com pessoas de qualquer formação ou ideologia. Isto sem a pretensão de convencimento de outrem ou proselitismo (conversionismo), já que não se parte da ideia inicial de que o Espiritismo seja (ou possa ser) o futuro nem o desembocar das religiões e filosofias, ou seja, uma doutrina melhor do que as outras. O que diferencia os seres entre si não é a “adjetivação” que ostentam ou o posicionamento filosófico (ou religioso) que tenham, mas “os esforços para vencer as más inclinações”, como está contido nos fundamentos da Doutrina e a realização de boas obras em favor do semelhante.
Como você analisa o atual estágio do Espiritismo no Brasil?
Marcelo Henrique – A pergunta comporta distintas vertentes de análise. Se pensarmos no Espiritismo institucional, capitaneado pelas organizações locais, regionais ou nacionais, vemos que muito se avançou no sentido da estruturação do movimento organizado, tendo, em distintos segmentos, entidades que produzem materiais e assessoram, com pessoas especializadas, o desenvolvimento de determinadas áreas dentro do conteúdo e da ação espiritista. Também se pensarmos no número de adeptos e simpatizantes, a Doutrina Espírita tem ocupado um destacado espaço na Sociedade, sendo disponibilizado o conhecimento espírita a milhões de pessoas, alavancado pelo crescente e acentuado interesse das empresas comerciais (de mídia, cinema, televisão, jornalismo e de produtos correlatos, como livros, CDs e DVDs) em temáticas espiritualistas e, até, espíritas (entre estas, documentários, filmes-biografias e adaptações de obras literárias), percebendo o verdadeiro “filão” econômico existente.
Contudo, em termos de liberdade de pensamento e expressão, ainda ficamos devendo, principalmente se comparado à realidade mundial dos países democráticos. Há gente que defende a existência de uma “pureza doutrinária”, a prescrição de obras “autorizadas” ou “conformes” ao pensamento espírita e a necessidade da prescrição de diretrizes gerais permanentes, emanada de órgãos superiores, que teria de ser seguida por todos, pessoas ou instituições.
Se buscarmos o pensamento legítimo do Codificador, encontraremos várias e destacadas afirmações sobre a garantia do livre-pensar e da possibilidade de convivência entre os “diferentes”, buscando-se as semelhanças e respeitando o próprio desenvolvimento pessoal (calcado nas experiências vivenciais de cada indivíduo, diferentes de per si). Isto é fundamental para entendermos que, entre os homens do século XXI, há muita proximidade na forma de buscar o entendimento sobre as realidades espirituais e aproximar as vertentes entre si é o principal desafios dos espíritas conscientes e interessados. Discriminar, impor, separar, segregar ou rotular não são ações oportunas no dicionário espiritual das condutas humano-espirituais.
Manoel Fernandes Neto – Na sua visão, como está o movimento espírita brasileiro?
Marcelo Henrique – A presente questão é correlata com a anterior. O movimento, na verdade, são “vários movimentos”. Há o majoritário, supervisionado pela Federação Espírita Brasileira (FEB), presente em todos os cantos do país, com estrutura centenária e organização comum desde 1948. Podemos denominá-lo, para fins didáticos, de movimento religioso espírita, já que suas vigas mestras são a consideração do Espiritismo como uma seita (moderna) cristã, estabelecendo a existência de um tríplice aspecto (ciência, filosofia e religião) no Espiritismo, a definição da figura central de Jesus e seu “reconhecimento” como Espírito Verdade, entidade que se identificou a Kardec e que assina um número considerável de orientações nas obras da Doutrina.
Há um outro segmento, não-religioso (laico) que adota a definição do próprio Codificador, para o Espiritismo, como “filosofia espiritualista com bases científicas e consequências morais” e que entende a necessidade de superar a fase “religiosa” do Espiritismo (vide a dissertação “períodos do espiritismo”, do próprio Kardec (“Revue Spirite”, dezembro/1863), para alcançar, adiante, o período intitulado intermediário que, mais à frente, irá desembocar no de regeneração social.
Há, ainda, outros “movimentos” menores, em termos de adeptos, mas que se desenvolvem normalmente no Brasil em face da diversidade cultural, da miscigenação étnica e dos diversos sincretismos religiosos. Importante salientar o crescimento do pensamento espírita, ganhando espaço na mídia e provocando o interesse e a atenção de um significativo contingente de pessoas, no Brasil. Entendemos que há plenas condições destes “espiritismos” conviverem e dialogarem entre si e, como costumo dizer, há muito mais de semelhança do que diferença entre os grupos/setores/instituições. A convivência pacífica é uma necessidade imperiosa, em face dos pressupostos doutrinários e, até para a atuação em conjunto, em determinadas áreas ou projetos, poderia representar avanços, tanto para a compreensão recíproca quanto para a promoção do bem comum e da felicidade, corolários do trabalho espiritista. É nisto que acreditamos e temos trabalhado nestes últimos anos.