“Nos deram espelhos e vimos um mundo doente
Tentei chorar e não consegui” (Renato Manfredini).
Foto: Joédson Alves, Agência Brasil
Os povos originários do nosso território brasileiro são os indígenas. Os sul-ameríndios, mais propriamente. Primeiros habitantes de nosso território, numa época “pré-civilizatória” (para os padrões eurocêntricos), dotados de cultura, hábitos e religiosidade próprias – entre outros elementos característicos. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2022), eles representam 0,4% de nossa população, distribuída entre 305 povos.
Em 1988, nosso país recebeu uma nova ordem constitucional, que recebeu o apelido de “Constituição Cidadã”, pelo reconhecimento dos direitos individuais e sociais. Em especial, o novo ordenamento jurídico consagrou a organização social, bem como as tradições, crenças, costumes e linguagem, assim como o direito originário (Indigenato) das localidades ocupadas pelos indígenas. O reconhecimento – assim como a defesa – destes direitos é o principal fator impeditivo ao genocídio de nossos irmãos indígenas, muito embora, em muitos casos, se constate o etnocídio e do epistemicídio que é a “morte” cultural derivada das filosofias, conhecimentos e visão de mundo próprias destes coletivos.
Nos últimos anos, se tem enfrentado hiatos em relação à continuidade da demarcação das terras indígenas e sua proteção, inclusive nos quatro anos anteriores a 2023, em face de um governo marcantemente interessado nas questões econômicas, sobrepujando-as indevida e ilegalmente aos direitos constitucionais e de cidadania, precarizando e sucateando as políticas públicas destinadas a esta importante parcela do nosso povo.
No último dia 30 de maio, a Câmara dos Deputados aprovou o texto-base do Projeto de Lei 490/2007, que trata do marco temporal para demarcação de terras indígenas. O tema, em verdade, já se arrasta há décadas, fruto da ineficiência do Estado, da ausência de políticas permanentes e da prevalência dos interesses econômicos. O objetivo da proposição é que as terras que não estejam ocupadas pelos indígenas, mas a eles pertençam, desde a promulgação da atual Constituição, muitas delas invadidas e depredadas, lhes sejam retiradas.
A matéria não é de exclusividade do Congresso Nacional – já que a proposição também será submetida ao Senado Federal – sendo que a mais alta corte judicial brasileira, o Supremo Tribunal Federal (STF) também realiza a apreciação da demarcação das terras indígenas. Vale dizer, juridicamente, que a matéria mesmo em caso de aprovação final pelo Legislativo, estará sujeita a interpelações e controvérsias, as quais serão dirimidas em caráter final pelo STF, que, neste caso, possui poder vinculante. A intenção legislativa, clara, é a de travar as demarcações em curso e antecipar o próprio julgamento em curso naquele tribunal, fazendo com que a análise judicial perca o seu objeto.
Entre as muitas excrescências presentes no malfadado texto, tem-se a permissão de contato com indígenas isolados, para intermediar ação estatal de utilidade pública – que nos remete a riscos de doenças ou de aculturação por inferência de terceiros; proíbe a ampliação de terras já demarcadas; prevê, igualmente, a retomada de territórios indígenas caso ocorra alteração dos traços culturais da comunidade, que pode ocorrer como citado; permite que, no caso de terras indígenas superpostas a unidades de conservação ambiental, a gestão fique com o órgão federal gestor da área protegida; estabelece a surreal dispensa de consulta prévia dos indígenas para, em suas terras, serem instaladas bases militares, implementadas rodovias, ferrovias e hidrovias, construídas hidrelétricas, assim como redes de comunicação, linhas de transmissão de energia elétrica. Também facilita, de modo inconstitucional, a contestação da demarcação de novos territórios indígenas, bem como, numa aculturação marcante, permite a celebração de contratos para a cooperação de indígenas e não-indígenas para agricultura e pecuária em suas terras, autorizando o cultivo de transgênicos. Na maioria das situações “legais”, o uso das terras indígenas mesmo sem a concordância dos povos indígenas.
Merece destaque que o atual governo, no último dia 28 de maio realizou a demarcação de seis terras indígenas – as primeiras desde o ano de 2008, representando a nítida intenção de regularizar a situação dos povos indígenas e motivando, assim, o “destravamento” do projeto de lei que é de 2007.
Brasília (DF) 30/05/2023 – Indígenas de varias etnias protestam nesta quarta feira na Esplanada dos Ministérios em Brasília contra a votação do Projeto de Lei (PL) 490/2007, que pretende estabelecer um marco temporal para a demarcação de terras indígenas Foto: Joédson Alves/Agência Brasil
Todo esse enredo e cenário nos faz lembrar de Renato Manfredini, o Russo, que, como poucos, conhecia profundamente os bastidores e os porões brasilienses. Citada na abertura deste texto, a sua canção, “Índios” (de 1986), é por nós evocada. Não que ela seja profética em relação ao que estejamos vivenciando quase quatro décadas depois, mas ela representa o reconhecimento prévio e posterior do estado de ignomínia na sociedade. A letra remonta ao passado de atrocidades cometidas contra os índios brasileiros, em especial as praticadas durante a ditadura militar, como os atentados (ataques a tiros, esfaqueamentos e degolas violentas nas aldeias) praticados por homens fardados contra adultos e crianças sobreviventes; também em relação às inúmeras doenças “da civilização”, levadas para aquela população, sem a cobertura de saúde necessária para a imunização e o tratamento de milhares de pessoas; e, por fim, as atividades ilegais de garimpo a mineração nos territórios indígenas, impingindo violência, fome e outras doenças derivadas da contaminação química das terras.
Portanto, na condição de espíritas e cidadãos brasileiros, como calar? Como se posicionar diante do reaparecimento de reminiscências egoístas, materialistas e cruéis, permeando a atuação dos legisladores? Como espíritas, que somos calcados no legado humanista, livre pensador, progressista de Kardec, não podemos aceitar passivamente tais afrontas à tão cara liberdade, à igualdade – hoje mais bem definida como equidade – e à fraternidade.
Resgatemos o conteúdo expresso em “O evangelho segundo o Espiritismo”, Capítulo III, itens 13 a 15, considerando que todos os seres (humanos) são irmãos e, mesmo, naquele contexto do século XIX, com derivações para o presente, deve se ponderar acerca das então consideradas “raças selvagens”, como bem exposto por Agostinho de Hipona, naquele trecho, como formadas, em sua maioria, por “Espíritos que apenas saíram da infância”, cujo objetivo seria o de se desenvolverem a partir do contato com os mais adiantados. Contanto, convivência e desenvolvimento pressupõem o respeito às suas características essenciais, já destacadas neste ensaio. Então, diante disto, é de se perguntar: os espíritas em geral se consideram mais adiantados que os mencionados antes, a ponto de contribuírem efetivamente com o aperfeiçoamento deles? E, mesmo não sendo espíritas, mas ampliando-se o escopo para a natureza cristã da maioria de nossa população brasileira, ou do elemento espiritualidade que pressupõe a condição de irmandade ou fraternidade universal, como se posicionar diante de uma nova “experiência” direcionada pelo orgulho e pela vaidade, a ponto de patrocinar, com tal hediondo projeto legislativo, a repetição de uma tutela cruel, digna dos colonizadores do século XVI e subsequentes?
Kardec amplia o entendimento e nos alerta para esses males ainda presentes e atuantes na alma humana, na “Revue Spirite”, de fevereiro de 1862, apontando que o egoísmo e o orgulho são, efetivamente, as causas da falência das sociedades e da morte de povos, pois todos os encarnados acabam sucumbindo a estes dois inimigos, caso intimamente não empreendam uma luta permanente para vencê-los.
Assim, nós, do coletivo “Espiritismo COM Kardec – ECK”, nos posicionamos totalmente contrários ao conteúdo do projeto e à iniciativa legislativa de discutir a matéria, tentando esvaziar a competente discussão que já se alonga no STF mas que, por questões de segurança jurídica e especialidade do tribunal se revestem de maior pertinência para prosseguir no intento de garantir a preservação de TODOS os direitos dos povos indígenas brasileiros e de garantir que o espírito do legislador constituinte de 1988 seja mantido!
Como Renato Russo, entoamos, então, ainda que em tom de súplica e alento, para além do nosso posicionamento, a estrofe-estribilho da citada canção: “Quem me dera ao menos uma vez, Acreditar…”.
Que não se cale nossa voz, entoemos altissonante o brado NÃO AO MARCO TEMPORAL!. De modo direto pelo voto 58 milhões de brasileiros e de modo indireto somados, outros 10 a 15 milhões querem e apóiam o Marco Temporal pouco se importando com os crimes de genocídio pelo extermínio dos povos originários. Do lado oposto ombreando-se a nós do ECK, também pelo voto de modo direto 62 milhões de brasileiros e de modo indireto outros 20 a 25 milhões repudiam o Marco Temporal, por ser este violação aos direitos humanos sagrados da Vida. Somos maioria e por isso não devemos esmorecer a luta. Ela está apenas começando, outros lances mais dramáticos virão, o inimigo nos espreita, mantenhamos a guarda. “O preço da liberdade é a eterna vigilância”.
É isso mesmo…eterna vigilância. Demos nós voz aos que a não têm. Belo texto.
Acompanho o ECK mais uma vez!
Não ao marco temporal!
Não podemos nos calar…
Não ao Marco Temporal!
Apoio o posicionamento do editorial do ECK, sobre a questão do marco temporal dos indígenas brasileiros. Defendamos os povos originários, os indígenas, que cuidam das florestas e preservam a natureza.
Nâo ao marco temporal!