Morrer no Japão deve ser ruim, por Marcus Vinicius de Azevedo Braga

Tempo de leitura: 6 minutos

Marcus Vinicius de Azevedo Braga

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Longe de diminuir a relevância das atividades mediúnicas na casa espírita, ou de apregoar, como muitos, um “Espiritismo sem Espíritos”, devemos refletir sobre o superdimensionamento do nosso papel nas reuniões mediúnicas, como sendo uma cruzada salvadora de Espíritos sofredores, e por vezes, contra “hordas de obsessores”, voltados para combater o Espiritismo, na ilusão de uma “guerra espiritual”, que resgata, com isso, uma visão de Deus incompatível com a Doutrina Espírita.

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O nosso modelo reunião mediúnica praticado no movimento espírita brasileiro – inclua-se aí a chamada educação da mediunidade e a desobsessão –, longe de ser padronizado, é fruto de uma construção ao longo de décadas, com influência de outras denominações e de autores, dado que Allan Kardec nas obras da chamada “Doutrina Espírita”, não foi diretivo na construção desse modelo, ainda que tenha trazido uma visão dialogal das atividades mediúnicas.

O modelo predominante, separada as atividades de cura e tratamento, é algo no sentido de atender Espíritos sofredores e que, em muitos casos, influenciam negativamente encarnados, e dessa matriz básica deriva um conjunto de atividades com médiuns psicofônicos e chamados “doutrinadores”, que atuam junto a esses espíritos comunicantes.

Dessa construção, o aspecto dialogal vai dando espaço a uma visão de que aquele trabalho é extremamente necessário, de forma que, numa visão fabril, quanto mais Espíritos se atende por sessão, melhor. Tem-se, assim, as práticas de múltiplas manifestações simultâneas e atendimentos quase instantâneos, onde se deseja encaminhar logo o Espírito para tratamento “pela Espiritualidade Superior” (pretensamente), dentro da ideia difundida do “choque anímico”.

Chegamos à provocação que traz o presente artigo. A de que “morrer no Japão deve ser ruim”. Sim, pois no Japão, temos meia dúzia (literalmente) de grupos espíritas conduzidos em sua maioria por brasileiros, e a população daquele país, ao desencarnar, não é beneficiária desse “atendimento” propiciado por essas reuniões, sendo a elas negado esse “rito” considerado pelos espíritas em geral como essencial. 

Aliás, pela exígua quantidade de espíritas no Brasil – uma minoria, segundo o Censo – desencarnar no Brasil atual, (ou no Brasil Império, ou na Idade Média), também deveria garantir uma dose extra de sofrimento, o que faz com que essa visão de universalidade espaço-temporal, uma marca da Filosofia Espírita, se vê por vezes esquecida nesse debate.

Longe de diminuir a relevância das atividades mediúnicas na casa espírita, ou de apregoar, como muitos, um “Espiritismo sem Espíritos”, o que seria um notório contrassenso, o que se traz para a reflexão é o superdimensionamento do nosso papel nessas reuniões, vendo-se como uma cruzada salvadora de Espíritos sofredores, e por vezes, contra “hordas de obsessores”, voltados para combater o Espiritismo, na ilusão de uma “guerra espiritual”, que resgata, com isso, uma visão de Deus incompatível com a Doutrina Espírita.

As reuniões mediúnicas são – mesmo que voltadas para o atendimento aos Espíritos ditos sofredores – de forma precípua, fonte de aprendizado, consoante com a visão de Kardec, e pelo diálogo esclarecedor e pela palavra fraterna, permeada pelos conhecimentos da Filosofia Espírita, podemos colaborar com mais um “irmão”, e aprendermos como grupo, diante do testemunho experiencial de alguém que não é, assim, tão distante de nós. 

Como a história motivacional da estrela do mar retornada ao oceano, na praia, em que o indivíduo fez a diferença, justamente pela qualidade aplicando-se-lhe à interação, no ouvir e no falar, na prática dialética, devemos investir na substituição do “nome” e da “conduta” do chamado “doutrinador” por um “esclarecedor” ou “dialogador”, justamente aquele que busca não um duelar de inteligências ou despejar conceitos doutrinários pasteurizados mas, opostamente, o que constrói um relacionamento baseado em uma conversa amorosa e profunda direcionada àquele que chega – e que, não raro, desconhece qualquer realidade que não seja a que construiu por anos, décadas (da presente existência) ou do somatório entre essa e as anteriores.

As influências de outras denominações de espiritualidade, visões distorcidas que aproximam a ação mediúnica de exorcismos vários, de pronto desconsideram que ali, na atividade dialogal, temos “irmãos” em Espírito, na boa letra da Filosofia Espírita – para além dos ritualismos religiosos – fazendo dessas práticas circunstâncias e discursos autoritários. Assim, se ostenta um “manto” de exclusivismo (derivado de pretensas autoridade e superioridade), que não dialoga com a visão universalista: a de que se tal práxis fosse algo realmente tão essencial e necessário para o progresso dos Espíritos, certamente, pela misericórdia divina, seria conduta mais pluralizada e comum – presente, assim, em diversificadas filosofias e religiões, e não algo segmentado, exclusivo da “doutrina” que os espíritas julgam praticar.

Desta conjuntura, surgem outras falácias: o aspecto quantitativo do atendimento, em detrimento da visão qualitativa; a incorporação de “técnicas” e “artifícios” para o diálogo, com uma essência distante do (verdadeiro) Espiritismo. Veja-se, de fato, que a Filosofia Espírita sempre valoriza o pensamento, a despeito de práticas exteriores e/ou rituais, como destacado em “O livro dos Espíritos”, assim como em “O livro dos Médiuns”. Mas os espíritas em geral seguem flagrantemente preocupados mais com o “rito” do que com o diálogo em si – e o aprendizado, para todos, esclarecedores e esclarecidos – como demonstram as reuniões por aí, sem qualquer mudança qualitativa.

Por ser uma construção humana (dos encarnados), embora tratada como algo “sagrado” (egresso de “Espíritos (tidos como) Superiores”, nas “orientações” recebidas por meio de médiuns que foram erigidos a categorias de “gurus” e, portanto, incontestáveis (a “voz da casa”), a prática mediúnica no meio espírita tem sofrido pela ausência de obras e artigos que a discutam com mais profundidade, enquanto pululam um conjunto de obras de fidelidade doutrinária duvidosa e que tratam modernamente desse assunto (distantes da universalidade proposta e praticada por Kardec, em que uma ideia – ou tese – seria validada por outras manifestações, ao mesmo tempo, por outros transmissores ou intérpretes, Espíritos e médiuns, e não reconhecida de pronto como “verdade”. Daí dizermos que a prática mediúnica segue sendo um tema ao mesmo tempo oculto na centralidade e central à margem.

Na trajetória (história) do meio espírita brasileiro – que assumiu o protagonismo, inclusive pelo adágio de “ter sido a árvore do Evangelho transplantada da França para o Brasil, de duvidosa para não dizer inventiva elaboração – houve uma “delegação mediúnica” para determinados “médiuns credenciados por um certo senso comum”, que passaram a delimitar como deveria ser a prática da mediunidade e para que ela serviria. A partir dali se convencionou que tal prática seria o modelo a ser adotado por todos, sem exceção, e que ela se bastava para as (nossas) questões de intercâmbio. À margem disso, por discordarem da “voz corrente”, os denominados “movimentos paralelos” foram surgindo e acabaram influenciando as ações dos grupos espíritas – e continuam, felizmente, influenciando, sobretudo diante da carência de discussões mais aprofundadas sobre o tema.

Quantas são as instituições espíritas que conhecemos que mantém grupos que estudam a fundo “O livro dos médiuns” ou promovem, sistematicamente, palestras sobre a obra e suas temáticas? Qual o percentual de artigos veiculados na imprensa espírita que versam sobre a questão da prática mediúnica, com bases sólidas? Quantos livros recentes de autores e editoras, sobretudo as mais procuradas ou reconhecidas pelo público espiritista tratam dessa questão, na esteira da ótica kardequiana? A realidade: vivemos um apagão de décadas acerca desse tema, o qual abriu espaço para a incorporação de práticas que não dialogam com a essência do pensamento da Filosofia Espírita.

É justamente nesse vácuo que se perdeu o aspecto dialogal da reunião, para consolidar uma atividade que assume esse papel de “braço encarnado” indispensável para um “trabalho espiritual salvador”. Como sustentação equivocada dessa prática, tem-se as visões persecutórias da relação com os Espíritos, muito próximas de uma desresponsabilização de nossos atos, em face, justamente da “forte” influência de atividades de entidades demoníacas. Nesse sentido, a validação “moral” destas atividades é que precisamos realizar, em caráter quantitativo, o socorro dessas entidades. E quem desencarnou no Japão, infelizmente, sofrerá à míngua na espiritualidade… 

É preciso, pois, resgatar Kardec também na prática mediúnica. Mas, para isso é preciso resgatá-lo daquela visão de mundo dos espíritas tradicionais e majoritários que, em sua maioria, o entendem como alguém ultrapassado, em uma visão etapista, de um novo que se sobrepõe a um velho. Distancia-se, pois, essa visão, dos princípios que permeiam o cotidiano que vai se construindo aos poucos, pela própria execução da Lei do Progresso, e isso se aplica a mediunidade na casa espírita, que abre mão de um livro completo (como “O livro dos médiuns”, para uma visão apostilada, cheia de enxertias de “fantasias” mediúnicas, ou de conhecimentos duvidosos, as quais não apresentam qualquer harmonia com a construção do Espiritismo, e a sua completa visão do ser, do destino e da dor. 

Para uma prática mediúnica segura, alinhada com os ideais espíritas, é preciso estar alicerçado nessas obras. É verdade que o intervalo temporal de Kardec representava um outro tempo, situado em um outro continente, o que reforça a necessidade de se construir conhecimento atual lastreado nessas bases, aplicado às nossas conjunturas espaço-tempo, e isso significa não incorporar visões e práticas dissonantes com esses princípios – sobretudo as que enxergam (todos) os Espíritos como sofredores – para entender e reconfigurar, com base nas bases kardecianas, o “plano espiritual” de forma adequada, sem infernos ou demônios.

Por fim, não adianta negar publicamente a questão mediúnica, pois este é o diferencial do Espiritismo em relação às religiões hegemônicas. Na prática, isto tem sido escondido em um “potinho”, pelo medo de não sermos aceitos em espaços plurais. A mediunidade está aí, como base e vivência do Espiritismo, e precisa ser praticada, sem tabus, mas com coerência, para evitar a repetição de erros que nos têm arrastado no lodaçal das crenças dogmáticas, ilógicas e sobrenaturais durante décadas.

Imagem de Bianca Van Dijk por Pixabay

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

One thought on “Morrer no Japão deve ser ruim, por Marcus Vinicius de Azevedo Braga

  1. Atuando há muitos anos em atividades mediúnicas, vi pouquíssimas transformações—para ser sincero, não vi nenhuma. Pelo contrário, observo médiuns cada vez mais distantes de Kardec e mais próximos de um mediunismo salvacionista. E acredite, isso não ocorre por falta de estudo das obras kardequianas, especialmente O Livro dos Médiuns. Parece que vivemos uma espécie de letargia, uma atrofia do pensamento no meio espírita. Parabéns pelo excelente artigo!

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