Texto Coletivo ECK (*)
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Ser mulher espírita é desafiar as estruturas paradigmáticas que resistem a mudanças. Viver, equilibrando-se, entre o aprendizado espiritual e as contradições sociais. Um contínuo exercício de superação, observando, dentro e fora das instituições espíritas, o profundo descompasso entre discurso e prática.
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Somos Mulheres. E somos espíritas. Por toda a parte, empunhamos essas bandeiras: a de ser mulher e a de divulgar os princípios espíritas, não somente em vozes ou textos, mas no cotidiano da existência.
As análises e reflexões que proporciona o conhecimento espírita partem dos princípios essenciais de filosofia moral na obra de Kardec (e dos Espíritos que dela participaram, pela mediunidade). Em “O livro dos Espíritos”, por exemplo, nos itens 817 e 822, encontramos a forte inclinação do Espiritismo para a plena igualdade de gênero. Por isso, a Filosofia Espírita, em suas entranhas, sustenta e defende a igualdade de direitos entre homens e mulheres.
Todavia, não podemos deixar de lado a circunstância conjuntural daquela época e as limitações naturais decorrentes. Quando Kardec perguntou, ele se baseou nas ideias de direito natural em que a natureza feminina e masculina eram concebidas como ideal de comportamento de gênero. Apesar de conceber a igualdade, aquela visão corroborada pelas Inteligências Invisíveis consultadas já é superada na atualidade, visto que homens e mulheres assumem as mesmas funções em vários setores da vida social e mesmo na familia. Passados 168 anos, mesmo com todos os avanços legislativos e sociais, a cultura machista e patriarcal segue manifesta nas violências sofridas pelas mulheres, principalmente no âmbito doméstico.
O que deve ser ressaltado é que, como o Espírito necessária e livremente encarna como mulher e como homem, para aprender com suas próprias vivências, da informação espírita deriva a consciência de que os sexos só existem na organização física. O gênero, então, é uma condição passageira, mera roupagem para experiências específicas. Isto nos faz entender, em plenitude, que, estando mulheres, hoje, não podemos escusar que já vivenciamos antes e/ou vivenciaremos depois as experiências do masculino.
E, quando se está mulher, se recebe uma missão diferenciada: a de ser mãe, a fonte da vida, permitindo que, por ela, um novo Espírito reencarne, iniciando uma nova jornada evolutiva na continuidade da experiência espiritual individual. Esse papel, exige da mulher, uma dedicação e abnegação que em nenhuma outra atividade se exerce. Após a maternidade, nunca mais será “só” ela. Sempre haverá essa ligação intensa, mesmo que, em alguns casos, sem o afeto correspondente. Afinal, o ser se formou e nutriu dentro dela. E esse diferencial da vida e de como a vida se processa, é fundamental para entendermos os desígnios de Deus. É nessa doação de nós mesmas, que nossos filhos se estruturam. O corpo feminino, faz esse processo com maestria: compartilhar para construir o outro ser. Isso é ser mulher.
Em paralelo – e também relevante e amoroso – como a verdadeira família é formada pelos laços espirituais, e não apenas pelos biológicos, o conceito de ente familiar transcende à união entre homem e mulher, incluindo assim os lares homoafetivos, as adoções e outras formas de convívio baseadas no amor e no respeito mútuo. É por isso que o “ser” e o “estar” mulher são muito importantes, também, para a defesa inconteste das questões LGBTQIAPN+, com a bandeira da equidade. E, não obstante isso, também lutar contra a misoginia tão evidente em relação a todas as mulheres. É preciso mudar o machismo cultural, que ainda resulta em preconceito, violências e falta de entendimento sobre quem somos e o que fazemos aqui.
É por isso que, remontando ao oito de março – mas não se restringindo apenas a essa data – as mulheres que se caracterizam pelo livre pensar no campo espírita devem reforçar suas expectativas para a construção de diálogos progressistas, humanistas, éticos e fraternos.
Ser uma mulher espírita é lutar. A luta não é física, corporal, mas espiritual; é uma luta contra suas próprias dificuldades. Ela busca ser um Espírito mais evoluído (isso, é claro, cabe a todos, homens e mulheres), encarando todos os obstáculos que as mulheres enfrentam relativos ao gênero, numa sociedade onde falar mais alto significa, no mínimo estar descontrolada. Porém, se homem fosse, diriam: “ele” tem personalidade forte.
Significa que a mulher espírita, neste mundo tão desigual, luta com as armas que tem: consciência, habilidade e iniciativa, sem esquecer da doçura e da temperança, para fazê-lo mais fraterno, mais solidário e mais justo. E ela saber fazer isso com voz firme, pausada, olhar fixado no olhar do outro, com elegância e brilho nos olhos! Resiliente, corajosa e forte para reivindicar nosso lugar emancipatório em todos os espaços, inclusive no Movimento Espírita. Impossível ser indiferente diante das injustiças sociais e dos sofrimentos humanos. Ser uma mulher que se posiciona, tem opinião, faz a sua parte e defende os mais fracos, contra os mais fortes.
Mulher-Espírito, Espírito-mulher, mulher-política, política-mulher…
Nos anos 60 do século passado houve um movimento mundial pró-emancipação da mulher, passando pela liberdade profissional-econômica e questionando os chamados “valores cristãos”, como a virgindade. Tempos revolucionários! A mulher passou a buscar e alcançar emancipação social e econômica, mas o seu empoderamento seguiu de forma lenta.
Hoje, enquanto movimentos sociais avançam na defesa dos direitos das mulheres, sentimos falta dos que se acham vinculados ao Espiritismo sendo uma voz mais ativa nessa causa. Questões como violência doméstica e igualdade de gênero não são apenas sociais, mas também espirituais. No entanto, muitas mulheres espíritas são desencorajadas a questionar normas opressoras ou a buscar independência, sob o argumento de que devem se conformar com provas ou missões pré-determinadas. Essa postura não apenas ignora o livre-arbítrio, mas perpetua uma espiritualidade que serve mais ao controle do que ao progresso.
Infelizmente, muitas vezes, é no próprio meio espírita, contaminado pela ideia de que “o santuário do lar” é o principal e único espaço de atuação que lhe cabe, que vemos mulheres escanteadas, sendo sempre coadjuvantes de homens com “capacidade duvidosa”, escondida nos ternos que ostentam.
O movimento espirita deve evoluir e caminhar junto com os movimentos feministas, posto que nenhuma das conquistas vieram sem luta. Esses direitos, durante as crises sociais e políticas, são sempre postos ao perigo de retrocesso. Se Kardec estava ao lado da defesa das mulheres do seu tempo, devemos hoje estar ao lado das mulheres em seus desafios contemporâneos, erradicando o machismo, rompendo com o patriarcalismo e toda forma de discriminação e opressão. Questionar, sempre, a legitimidade daqueles que (nos) oprimem, machucam e dominam, na restrição das nossas liberdades.
Assim, como muitas instituições e práticas espíritas ainda reforçam papéis tradicionais de gênero que limitam a autonomia das mulheres, é essencial questionar: como conciliar o livre-arbítrio com as expectativas e julgamentos que recaem sobre cada uma de nós, enquanto mulheres?
Em um mundo complexo, ser mulher espírita é desafiar as estruturas paradigmáticas que resistem a mudanças; mas este momento precisa de nós e como espíritos em evolução, precisamos estar nele. Viver, equilibrando-se, entre o aprendizado espiritual e as contradições sociais. Um contínuo exercício de superação, observando, dentro e fora das instituições espíritas, o profundo descompasso entre discurso e prática.
As mulheres espíritas conscientes, portanto, são aquelas que enxergam os aspectos não-revelados dos fenômenos sociais e o impacto das violências sobre o ser mulher nesta encarnação. Nosso amadurecimento espiritual é comprovado quando compreendemos e expandimos esta visão para outras mulheres e também para os homens de boa vontade, Que a nossa vinda a este planeta não está necessariamente vinculada a buscas românticas, nem servilismos domésticos, incluindo até mesmo a maternidade, sempre vista como obrigação.
Ainda assim, ser uma mulher espírita me traz esperança. Acredito que o Espiritismo tem o potencial e a missão de ser uma ferramenta de transformação social, mas precisa caminhar junto com a ciência e refletir os anseios da sociedade. Enquanto espírita, busco viver os princípios de amor, justiça e caridade de forma crítica, entendendo que meu progresso espiritual também passa por desafiar estruturas opressoras e lutar por um mundo mais justo para todos.
Cabe, portanto, a todas nós, mulheres espíritas, alcançadas ainda pelas mazelas que a sociedade patriarcal nos deixou como herança, na tarefa educativa que temos, no lar, na instituição espírita e na sociedade, contribuirmos com a formação de homens mais amadurecidos, que não enxerguem as mulheres como concorrentes, mas como parceiras de vida, todos com a responsabilidade de contribuir na construção de uma sociedade melhor.
Não é fácil ser mulher espírita nesta encarnação. O mundo é dos homens, a fala é deles, e o poder lhes pertence, naturalmente… Importa – e muito – o nosso Espírito de alegria e de felicidade, mesmo quando todas as adversidades se apresentam à nossa frente. Assim somos, Mulheres-Espíritas, Espíritas-Mulheres!
Nota do ECK:
(*) Participaram deste texto coletivo as seguintes mulheres espíritas (ordem alfabética): Alessandra Araújo, Ana Cláudia Laurindo, Bianca Medran Moreira, Carol Abreu, Débora Nogueira, Eliana Haddad, Isabelle Sarmento Figuerôa, Jacira Silva, Julia Nezu de Oliveira, Leopoldina Xavier, Lídia Valesca Pimentel, Márcia Barroso, Marilene Francisca de Campos, Martha Novis, Regina Celi Pedron e Thelma Barros Lopes.
O ECK agradece o carinho do aceite do convite para participar deste projeto e se irmana às mulheres espíritas, nesta data.
Imagem de Jill Wellington por Pixabay
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