Não julgar não é passar pano, por Marcelo Teixeira

Tempo de leitura: 7 minutos

Marcelo Teixeira

Sílvio Santos reside e continuará residindo na lembrança afetiva de milhões de homens e mulheres. Tem ele no currículo pontos a seu favor. Afinal, ninguém é bom ou ruim o tempo inteiro. Pessoas boas também fazem coisas ruins e gente considerada ruim também faz coisas boas.

A morte do apresentador de TV e empresário Sílvio Santos mobilizou o país e mereceu holofotes generosos de todos os veículos de comunicação, que se esmeraram em programas e coberturas totalmente dedicadas a ele e repletas de depoimentos de amigos e artistas.

Ao mesmo tempo, choveram fatos desabonadores. Vários jornalistas, historiadores e artistas fizeram questão de destacar o quanto o “Homem do Baú” se beneficiou da ditadura militar e da ingenuidade do povo brasileiro para enriquecer a olhos vistos. E como era de se esperar, inúmeras pessoas, incluindo alguns espíritas, foram para as redes sociais dizer que não devemos julgar, que Jesus recomendou prestarmos atenção na trave que tampa nosso olho e atrapalha a visão em vez do cisco que está no olho alheio, etc. Não se trata, porém, de julgar, mas de evitarmos “passar pano”, como se diz por aí, sob o risco de endeusarmos e blindarmos pessoas só porque elas detêm forte penetração popular, riqueza e prestígio.

Dono de notável carisma, tino comercial e facilidade de dialogar com as classes mais populares, Sílvio Santos marcou a história da televisão brasileira – meio de comunicação que, conforme observou muito bem o jornalista Pedro Bial em reportagem exibida no Jornal Nacional (JN) de 17 de agosto de 2024 (data do falecimento de Sílvio), ele sabia dominar como ninguém. Disse Bial que Sílvio foi um dos primeiros a entender como a televisão funcionava não só como entretenimento, mas também como negócio. Estava certo. E desse negócio, ele soube tirar grande proveito. Não à toa, o cantor e compositor Gilberto Gil, nesse mesmo JN, o definiu de forma exemplar: “Chacrinha era o velho palhaço; Sílvio Santos, o velho mascate”. Na mosca!

Vindo de uma abonada família de negociantes judeus que desfrutava de situação confortável em Portugal e Espanha, migrou para a Grécia e, depois, veio para o Brasil. Aqui Sílvio começou trabalhando como camelô no Centro do Rio de Janeiro, não porque fosse um pé-rapado em busca de um ganha-pão, mas para complementar a renda. Como tinha uma voz potente, foi aconselhado a tentar a sorte no rádio. Daí, ele juntou o tino comercial com a pujança do nascente negócio da comunicação audiovisual. Deu certo!

A atuação televisiva

Cresci assistindo ao Programa Sílvio Santos. O apresentador começou na TV Paulista na década de 60 do século passado, a mesma em que nasci. Por ser uma emissora local, somente São Paulo o assistia. Só que a TV Paulista, no início dos anos 70, foi comprada pela TV Globo e, por isso, a atração dominical passou a ser vista em todo o território nacional, se tornando uma forte referência em matéria de entretenimento televisivo para as massas.

Convém ressaltar que, nessa época, não havia TV por assinatura, internet e afins. Além disso, as emissoras de sinal aberto, além de serem poucas, não primavam por uma programação de qualidade, principalmente aos domingos. E como o Programa Sílvio Santos ia ao ar das 10h às 20h com um leque variado de atrações, acabou se tornando o ponto de encontro da família brasileira. Era comum todos se reunirem em volta da televisão para assisti-lo. Isso sem falar que ele tinha o elenco da TV Globo à disposição. No final dos anos 70, ele foi para a TV Tupi, mas manteve a audiência e fez a Globo rebolar para preencher, com programação de qualidade, os horários que ficaram vazios.

Eu tinha predileção especial pelos quadros de perguntas e respostas sobre conhecimentos gerais, os chamados “quiz shows”. E sempre houve vários ao longo do tempo: “Só compra quem tem” (tive um jogo de tabuleiro desse quadro), “Arrisca tudo”, “Tentação”, “Qual é a música?”… Isso sem falar no “Show do Milhão”, que fez sucesso nas noites semanais do início deste século e do qual sonhava participar. Tanto que vivia remetendo cupons de inscrição na esperança de ser sorteado (sempre fui bom em conhecimentos gerais). Além disso, ganhei uma graninha enviando perguntas por meio do site.

Relato isso tudo porque Sílvio Santos também fez parte da minha formação. Não estou à parte da sociedade brasileira que tinha na TV a melhor forma de entretenimento em época de poucas opções. O olhar crítico, no entanto, não me deixa esquecer o intragável “Show de calouros”, o bobinho “Namoro na TV” e o lamentável “Topa tudo por dinheiro”, o qual, apesar de uma ou outra gracinha passável, colocava as pessoas em situações vexatórias por meio de pegadinhas constrangedoras e até escatológicas.

A exploração da falta de cultura e da simplicidade das pessoas

Sílvio Santos pode ter sido um grande comunicador, homem de TV e empresário visionário. Mas fez fortuna tripudiando em cima da falta de cultura e da simplicidade dos que compravam os produtos financeiros por ele oferecidos (carnê do baú, títulos de capitalização, tele sena etc.). Tudo não passava, no fim das contas, de um grande cassino. A pessoa comprava o carnê do baú na esperança de ser sorteada para tentar a sorte no programa. Se fosse, nada garantia se sairia com um bom prêmio, já que teria de disputá-lo com os demais sorteados. Se não fosse, ao término do pagamento do carnê, poderia levá-lo às lojas do Baú da Felicidade e trocar o valor pago durante um ano por mercadorias geralmente caras e de baixa qualidade. Um engodo, portanto. Isso sem falar nas tiradas misóginas, homofóbicas, machistas e racistas, que poderiam até ser desculpáveis no século passado, mas que passaram a soar bem incômodas neste século e que ele continuou a proferir, talvez por se julgar acima do bem e do mal. Preciso citar também, o alto faturamento publicitário que ele obtinha, já que anunciar nos intervalos comerciais das principais atrações televisivas é caro. Em suma: os valores dos prêmios que ele dava no palco eram uma ninharia perto do que ele arrecadava com publicidade e com a venda de carnês.

Silvio e a ditadura

A face mais lamentável na vida de Sílvio, todavia, diz respeito ao apoio incondicional que ele deu ao regime militar, que governou o país de 1964 a 1985. Um período de infelicidade, atraso cultural e tensão política que perseguiu e exilou artistas e intelectuais, além de torturar e matar quem a ele se opusesse. Convém salientar: a atriz Bete Mendes foi torturada; o dramaturgo Dias Gomes foi preso, o jornalista Vladimir Herzog e o educador Anísio Teixeira foram assassinados; o marido da atriz Beatriz Segall ficou semanas desaparecido; várias canções, peças teatrais e programas de TV foram censurados, entre outras arbitrariedades. Ao mesmo tempo, o Homem do Baú levava ao ar os abjetos “A semana do presidente”, em que mostrava o que o general da vez governante da nação havia feito (inaugurações, visitas oficiais, participações em eventos…) e “Como vai, Sr. ministro?”, onde a vida e a agenda dos ministros de Estado eram mostradas. Tudo isso em troca de favores e vantagens.

Em 1981, quando ele obteve do presidente (e general) João Batista Figueiredo a concessão para ter um canal de TV, surgiu o Sistema Brasileiro de Televisão (SBT), que seguiu a cartilha popularesca do proprietário e priorizou programas de gosto duvidoso, como “Fantasia”, “Programa do Ratinho”, “Viva a Noite”, “Coquetel”, “Aqui e Agora”, além das novelas mexicanas. A bajulação aos presidentes (agora civis) que foram assumindo o cargo e a exploração dos menos favorecidos continuaram. Como cereja do bolo, em pleno governo Bolsonaro, Sílvio Santos ressuscitou o nefasto slogan “Brasil: ame-o ou deixe-o”, que marcou o auge da ditadura militar, e também o quadro “A semana do presidente”, exibindo ambos nos intervalos comerciais. A repercussão foi tão ruim que os dois tiveram de ser tirados do ar, felizmente.

Lições espíritas oportunas

Trago tudo isso à tona num artigo espírita porque é necessário deixar claro que fazer esse histórico, ainda que breve, não é julgar, como muitos espíritas disseram e, decerto, ainda dirão. Julgar é quando, por despeito, preconceito, má educação ou falta do que fazer, apontamos dedos inquisidores para as pessoas, a fim de dissimularmos as nossas próprias falhas, muitas vezes idênticas às que observamos no próximo.

Kardec toca na questão da correta intepretação do ato de julgar no item 13 do capítulo X, de “O Evangelho segundo o espiritismo”. Observa ele que o reproche lançado à conduta alheia pode obedecer a dois propósitos: reprimir o mal ou desacreditar a pessoa que está sendo criticada. Este segundo, embora condenável, não é o objeto de nosso estudo. O inicial vai ao encontro do que queremos evidenciar. Em relação a ele, Kardec prossegue:

“O primeiro pode ser louvável, e torna-se mesmo um dever em certos casos, pois dele pode resultar um bem, e porque sem ele o mal jamais será reprimido na sociedade”.

E complementa ressaltando, logo a seguir, que seria fora de propósito Jesus proibir que condenássemos o mal, já que ele o fez diversas vezes. Observa, porém que

“a autoridade da censura está na razão da autoridade moral daquele que a pronuncia”.

Trocando em miúdos, se Sílvio Santos está tendo o lado escuso do passado colocado em evidência é porque o passado mal contado e mal resolvido dos tempos da ditadura militar e dos que dela se beneficiaram, precisa vir a público. E quem põe o dedo nessa ferida não fechada, mas constantemente ignorada, são justamente as pessoas interessadas em passar o Brasil a limpo – jornalistas, historiadores, militantes dos direitos humanos etc. –, a fim de que algo semelhante não volte a ocorrer.

Essa assertiva ganha corpo mais adiante, no item 21 do mesmo capítulo quando, respondendo à pergunta acerca da conveniência de se desvendar o mal de outrem, o Espírito São Luís deixa claro:

“Se as imperfeições de uma pessoa só prejudicam a ela mesma, não há jamais utilidade em divulgá-las. Mas se elas podem  prejudicar a outros, é necessário preferir o interesse do maior número ao de um só. Conforme as circunstâncias, desmascarar a hipocrisia e a mentira pode ser um dever, pois é melhor que um homem caia, do que muitos serem enganados e se tornarem suas vítimas. E em semelhante caso, é necessário balancear as vantagens e os inconvenientes” .

Tudo a ver com a importância de passarmos o pente fino na trajetória desse que é considerado o maior animador de auditório da história da televisão brasileira.

Sílvio Santos reside e continuará residindo na lembrança afetiva de milhões de homens e mulheres. Não podemos, entretanto, perder de vista que somos um país sem memória, que sabe muito pouco sobre a própria história, que nosso sistema educacional há décadas deficiente produz uma população de baixo repertório crítico e intelectual, que a injustiça social que há tanto tempo grassa pelo país produz um imenso contingente de pessoas sem acesso a lazer e informação de qualidade e de que ele se aproveitou disso tudo para enriquecer. E o fez bajulando os meganhas da ditadura, explorando a boa fé alheia e construindo um império de comunicação que usou e abusou do popularesco e nivelou por baixo tudo a seu redor. Com o talento para se comunicar e cativar pessoas que ele possuía, poderia ter levado cultura, entretenimento saudável e jornalismo de qualidade aos lares brasileiros. Mas infelizmente, ele preferiu a porta larga que conduz à perdição. Pena!

Decerto, ele tem no currículo pontos a seu favor. Afinal, ninguém é bom ou ruim o tempo inteiro. Pessoas boas também fazem coisas ruins e gente considerada ruim também faz coisas boas. O baú que ele terá de abrir do lado de lá tem ambos os conteúdos. Entristece, no entanto, pensar que, do lado desabonador, ele pensou no país mais como um grande negócio para si próprio do que num campo fértil para semear progresso social por meio da comunicação televisiva e ajudar na formação de cidadãos lúcidos, combativos e esclarecidos.

 

Fonte:

KARDEC, A. O evangelho segundo o Espiritismo. Trad. J. Herculano Pires. 59. Ed. São Paulo: LAKE, 2003.

Imagem de Alexander Antropov por Pixabay

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

One thought on “Não julgar não é passar pano, por Marcelo Teixeira

  1. Um texto exemplar, quer pela história de vida de Silvio Santos ao analisar a capacidade de comunicador, do tino mercantilista e criativo, da persuasão para ser seguido, da ausência de escrúpulos para explorar a boa-fé quer no grande negócio que era o Baú da Felicidade, quer nos programas que abusavam do baixo senso critico e intelectual do povo, posto que manter esse nível era a fórmula para manter seus lucros, ao oportunismo de referendar a Ditadura Militar para tirar proveito próprio, em resumo, SS um homem individualista que só tinha como farol seus próprios benefícios, ética combinada com valores pouco recomendáveis embasava sua conduta, tudo pelo milhão, por tudo isso ser comentado e avaliado faz parte de um exemplo do que há que ser melhorado, de que há um mundo de valores que pode se sustentar nos bens materiais, mas jamais negar os bens culturais e espirituais que podem elevar e evoluir.

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