O abençoado direito de morrer!, por Marcelo Henrique

Tempo de leitura: 6 minutos

Marcelo Henrique

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“Tem dias que eu fico / Pensando na vida / E sinceramente / Não vejo saída

Como é, por exemplo / Que dá pra entender / A gente mal nasce / Começa a morrer

Depois da chegada / Vem sempre a partida / Porque não há nada / Sem separação

 Sei lá, sei lá / A vida é uma grande ilusão

Sei lá, sei lá / Só sei que ela está com a razão” (“Sei lá”, Tom Jobim).

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A instantaneidade da vida comprova: num segundo você está vivo, no outro já se foi, partiu para sempre. Ou não, porque permanecem as lembranças nos que ficaram.

O fato é que a vida deve ser protegida, garantida, respeitada e, as ameaças a ela, combatidas, denunciadas, reduzidas a zero. Se pudermos.

A vida restou consolidada na totalidade das nações como direito fundamental, protegendo-se, por todos os meios jurídico-legais, a sua continuidade. E, por extensão, a condição digna da existência, com os meios materiais e as providências sociais e estatais para minimizar as injustiças sociais, a indigência e a pobreza absoluta.

E a morte? Também não deveria ser garantido o direito a ela? Em que situações e circunstâncias proibir a morte significa atentar contra a vida?

Reflitamos…

 

Em especial porque, há pouco mais de uma semana, o “direito de morrer” foi garantido a uma personalidade marcante das letras brasileiras. Mais que isso, ele foi compositor, poeta, crítico literário, filósofo e escritor brasileiro. Vale lembrar que, eleito em 10 de agosto de 2017, para a Academia Brasileira de Letras (ABL), ele tomou posse em 16 de março de 2018.

Falamos de Antonio Cícero, 79 anos. Nas mídias, em 23 de outubro último, após padecer por anos de Alzheimer, noticiou-se a morte do “imortal”, com acompanhamento médico, na Suiça – já que neste país europeu a prática é permitida e regulamentada, exceto em situações que a justiça considere como “motivo egoísta”. Em 13 de setembro de 2022, pelo mesmo procedimento, outra personalidade marcante, o cineasta Jean-Luc Godard, aos 91 anos, também deixou o plano da materialidade, porque padecia de múltiplas patologias incapacitantes.

O procedimento, tecnicamente, em ambos os casos é conceituado como “suicídio assistido”, situação em que a equipe médica fornece ao paciente os medicamentos para que ele mesmo ingira, fatalmente.

Sua morte, por se tratar de um cidadão brasileiro e, mais que isso, de uma personalidade mundialmente conhecida na cultura, filosofia e artes literárias, vinculado ao nosso país, reacendeu o debate sobre a legalização da morte enquanto direito fundamental em terras brasileiras, incluindo-se as temáticas correlatas como eutanásia, suicídio assistido e dignidade da morte.

A circunstância da “extensão da vida”, sobretudo em casos penosos, traumáticos e de pungentes sofrimentos, tanto para pacientes como familiares e amigos próximos, que acompanham a “via crucis” dos doentes, alguns até em estado terminal e de total dependência, é referendada pelo conservadorismo religioso e de sua moral particular, diante de dogmas e prescrições de conduta. A vida, assim, continua a ser considerada como “dom divino”, com a justificativa precária de que o “Criador” e somente ele teria a prerrogativa de conceder e retirar o sopro que mantém a existência material.

Do contrário, a Ciência postula as questões biológicas e bioéticas, correlatas à genética, à condição de procriar, a estrutura dos organismos vivos, o instinto de conservação, entre outros elementos que se descolam, lógica e racionalmente da fé religiosa.

E os indivíduos, independentemente de suas crenças, assim como os Estados – contemporaneamente laicos, sem vinculação a matizes religiosos ou de crenças específicas e particulares – devem se pautar pela associação de conceitos jurídico-legais e clínico-médicos para a formação de convicções, para a definição de condutas possíveis e para a descriminalização daquilo que, no Brasil e muitas outras nações, é tipificado como conduta criminal.

Assim, a questão também perpassa o contexto econômico-financeiro, diante da diferença dos tratamentos clínicos públicos e privados, a limitação técnica de muitos estabelecimentos de saúde pública, inclusive porque longas internações sem o devido e completo suporte do Estado evidenciam que o conceito de “dignidade da morte”, diante de situações e contextos insuportáveis e altamente dolorosos, acaba restrita aos que possuem privilégios financeiros. Distante, portanto, da equidade que supera o conceito de isonomia (igualdade) estabelecido, por exemplo, em vários dispositivos da Constituição Brasileira.

Vale ponderar, também, que o aumento da longevidade populacional escancara a necessidade de readaptação seja do Sistema Único de Saúde, seja dos sistemas privados, para lidar com uma população que já alcança, atualmente, mais de 15 por cento do total, ou seja, além de 30 milhões de pessoas. Daí a necessidade de discussões bioéticas sobre a terminalidade da vida e seus reflexos na sociedade brasileira (e mundial).

Europeus e norte-americanos, aliás, têm avançado em práticas de dignificação da morte, com respeito aos pacientes em seus momentos derradeiros. Colômbia é o 1° país da América Latina a aceitar a prática. Chile e Uruguai têm discussões adiantadas sobre a legalização de procedimentos de interrupção da vida, com o teor de “morte digna”.

Cumpre relembrar que, em 2005, foi consignada a “Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos”, elaborada pela Unesco e subscrita por 191 países, que reafirma o compromisso público estatal e mundial pelo respeito à dignidade humana e aos direitos humanos como um todo.

Significa dizer que os especialistas em bioética de todo o mundo se esforçam por tratar a morte com a mesma atenção e respeito como tratam a vida, evitando sua banalização e a validação de condutas que enalteçam as duas maiores chagas da Humanidade, o orgulho e o egoísmo.

Nesta parte ocidental do Globo, o pensamento cristão é dominante e expresso por diversas seitas e religiões. Diz-se que o chamado Cristianismo sucede e complementa o Judaísmo, conciliando-se o Antigo e o Novo Testamento. Abstraindo-se o fato (lógico-racional) de que tenham sido homens (humanos) os “redatores” dos “livros sagrados”, deve-se refletir que, diante da chamada “Tábua dos Dez Mandamentos”, atribuída a Moisés, que prescrevia obrigações de fazer ou não fazer, em número, logicamente, decenal, recordemos que Yeshua (Jesus de Nazaré) teria apenas consignado uma recomendação: “Ama o Senhor teu Deus, de todo o teu coração, de todo o teu Espírito, e ao próximo como a ti mesmo” (Lc; 10:27; Mc; 12:30-34; Mt; 22:37-39).

Eis, aí, o verdadeiro sentido do amor universal, que se insere no contexto cristão para representar a atitude de amor ao Criador (Universo) e aos demais irmãos (seres humano-espirituais).

Para os que, como nós, se vinculam ao Espiritismo – que não possui dogmas, liturgias, sacramentos, hierarquias sacerdotais e/ou práticas religiosas –  é essencial a exata noção de uma filosofia espiritualista, com bases científicas e consequências morais, como prescreveu seu fundador, Allan Kardec. Ou nas próprias palavras do Professor francês, “in verbis”: “1. ─ O Espiritismo é, simultaneamente, uma ciência de observação e uma doutrina filosófica. Como ciência prática, consiste nas relações que se estabelecem entre os Espíritos; como filosofia, compreende o conjunto de consequências morais derivadas dessas relações” (Kardec, A. “Revue Spirite”. Abril, 1864. Resumo da Lei dos Fenômenos Espíritas. Nossa Tradução).

Portanto, em uma das questões do primeiro livro que Kardec escreveu e publicou”, ao tratar de uma situação de interrupção da existência (vida física) de um ser humano, ele recebeu a seguinte resposta: “Há crime sempre que se transgride as Leis Divinas” (Kardec, A. “O livro dos Espíritos. Livro Segundo. Capítulo VII – Retorno à vida corporal. Item 358). E, como não se conhece, de completo e na extensão que lhe competem tais leis, nem como se efetiva o cumprimento/descumprimento delas, há que se ponderar que não há como se afirmar que a interrupção voluntária da existência seja, em todas as situações, um desrespeito ao Universo e suas Leis. Do contrário, a motivação dos atos espirituais – como se dá em relação aos humanos – é que deve ser a “balança” para sopesar os atos espirituais-humanos.

Distante, pois, da cegueira das fés parciais, das religiões que se julgam superiores às demais e priorísticas em relação à sua (particular) interpretação de todos os contextos existenciais-espirituais, devemos salientar a importância de termos, neste século 21, democracias pluralistas laicas e secularizadas, distantes do absolutismo moral praticado pelas primeiras. Razão porque, na contemporaneidade, sejam patrocinadas, em nosso país, a partir do Conselho Nacional de Saúde, do Ministério da Saúde e de instituições públicas e privadas vinculadas a estudos bioéticos, um conjunto de discussões responsáveis sobre este e outros temas, respeitando, ética e juridicamente, o pluralismo de percepções e entendimentos, calcados na Ciência, presente em nossa sociedade brasileira e planetária.

Sugere-se, ainda, em coro com os profissionais da área, que se institua o Conselho Nacional de Bioética em nosso país, para pautar as discussões, promover estudos, municiar os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, no assessoramento e patrocínio de regramentos jurídico-legais sobre esta e outras temáticas de interesse e pertinência.

Conclusivamente, sabemos que a morte gera, naturalmente, diríamos, um conjunto de sentimentos que incluem a piedade, a fraternidade, a solidariedade, a caridade, a comoção e a emoção. Este é, inclusive, um ambiente altamente favorável para eventuais (e possíveis) avanços legislativos.

Voltando a Cícero e seus oportunos escritos e trabalhos, para ele “melhor se guarda o voo de um pássaro do que pássaros sem voos”. Os voos são a vida plena, qualificada e digna, assim como a morte, em mesma plenitude, qualidade e dignidade. Ele pôde, em vida, exercitar esta sonata, até que seus órgãos, músculos e sentidos não mais respondiam adequadamente. Quanto à morte, precisou, graças aos recursos financeiros de que dispunha, buscar, fora do Brasil, os elementos de garantia do seu réquiem, com dignidade, qualidade e plenitude.

E quanto a nós?

Imagem de akbaranifsolo por Pixabay

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

2 thoughts on “O abençoado direito de morrer!, por Marcelo Henrique

  1. É um texto que muda a forma de encarar a morte assistida, que é praticada em casos excepcionais. O respeito pelo livre árbitrio é absoluto, mas só nos casos em que se é forte materialnente falando e uma escolha a que só as pessoas de posses têm acesso. Todos os países deviam adoptar essa prática, porque devido a dogmas de natureza religiosa, todos nascem iguais mas nem todos têm o direito de morrer dignamente por serem pobres.

  2. Muito bom!

    Recordo-me de meu irmão, acometido por um câncer irreversível na região do peritônio. Quando o coquetel de morfina já não mais aliviava suas dores lancinantes, ele, naturalmente, dispensou os medicamentos. No hospital, em seu derradeiro suspiro, disse: ‘Já não suporto mais, preciso ir.’ Suspirou… e partiu. Católico, homem de fé, mostrou-me que a decisão pertence ao espírito, e é nosso dever conceder-lhe todas as condições para partir em paz.

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