Marcus Braga e Marcelo Henrique
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Diante de mais uma tentativa legislativa de conter os avanços histórico-legais-jurídicos de interpretação da garantia da vida e da proteção dos direitos da mulher, tem o Espiritismo informações úteis para que se possa melhor entender a nossa conjuntura, evitando interpretações precipitadas e distantes dos conceitos presentes nas Leis de Deus.
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Novamente, no cenário público republicano brasileiro a discussão sobre o aborto em sede legislativa volta à cena. Contudo, dado que na democracia se espera que as decisões legislativas contemplem a diversidade de visões de mundo estampadas nas crenças, o presente texto pretende discutir uma visão ampla das pretensas mudanças trazidas pela PEC (Proposta de Emenda Constitucional) n. 164/2012. Sim, a proposta data de doze anos atrás e, agora, consoante a atual composição da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, a proposta foi aprovada, em 27 de novembro último, pelo placar de 35×15..
Destacadamente, há um paradigma de mais de 80 anos de aborto legal no Brasil, fruto de outras discussões pregressas sobre a temática, em foro legislativo criminal, sendo naturalmente da esfera do mundo legislativo abordar esta e outras questões correlatas à vida (e à morte, por extensão). Ainda que, mais uma vez, a discussão em sede do legislativo brasileiro seja motivada por questões fundamentalmente religiosas e não de saúde pública ou do direito das mulheres, nos cabe discutir, neste ensaio, apenas os aspectos espirituais correlacionados à criminalização de todo e qualquer tipo de interrupção voluntária da gravidez, mesmo aqueles em que há destacado risco de morte da gestante e os que encampam o fruto do estupro.
Não cabe discutir aqui se o aborto legal facilita a fraude para fazer abortos ilegais, ou se ocorrerá o incremento no número de abortos clandestinos; nem se haverá a proteção e o estímulo a estupradores e outras consequências de implementação desse dispositivo. Deixemos essas matérias para os analistas políticos. Interessa-nos o subsídio para uma visão espiritual-espirita, oportuna para motivar reflexões individuais e fomentar debates de parte desse grupo específico.
Primeiramente, cabe relembrar o que Kardec tratou de forma direta em “O livro dos Espíritos” (item 359, na tradução de J. Herculano Pires), no que tange à garantia do prosseguimento da existência física da gestante: “No caso em que a vida da mãe estaria em perigo pelo nascimento da criança, há crime em sacrificar a criança para salvar a mãe?”. Interrogadas, as Inteligências Invisíveis se pronunciaram: “É preferível sacrificar o ser que não existe a sacrificar o que existe”.
A lógica, portanto dos Espíritos que responderam ao Professor francês é a mesma constante do Código Penal Brasileiro de 1940 e que, em face do texto recém-aprovado, ainda que preliminarmente, frise-se, está sob risco de ser abolida. Vale salientar que a mãe pode ser responsável por outras pessoas (filhos, pais idosos, irmãos, etc.), já que a generalidade da norma, se modificada, seria impositiva para proibir o aborto nesses casos, não havendo qualquer excludente de ilicitude. Em outras palavras, não seria analisado cada caso para autorizar ou não o aborto, em termos legais, embora, considerando-se a realidade jurídica em nosso país, haveria uma significativa quantidade de processos (com liminares) para, com a prova egressa de parecer de profissionais da saúde (médicos), o Judiciário autorizasse, em face do mencionado risco (de morte) para a mãe, o aborto.
Na verdade, o espírito legislativo do dispositivo em vigência está fundamentado na ideia de que se está interrompendo algo que é demonstradamente inviável, em face dos avanços da tecnologia em saúde e que tornam essa decisão (clínica e, depois, jurídica) cada vez mais abalizada. Assim, impor essa gestação de risco é condenar a própria gestante, diante da perspectiva demonstrada de estar-se abreviando aquela reencarnação.
Esse caso, pois, é inconteste e não demanda quaisquer esforços hermenêuticos mais elaborados.
Vamos, pois, às outras duas questões (357 e 358) da obra inicial do Espiritismo, já mencionada: I) “Quais são, para o Espírito, as consequências do aborto?”. Resposta: “Uma existência nula e a recomeçar”; II) “O aborto provocado é um crime, qualquer que seja a época da concepção?”. Resposta: “Há sempre crime quando se transgrede a lei de Deus. A mãe ou qualquer pessoa cometerá sempre um crime ao tirar a vida à criança antes do seu nascimento, porque isso é impedir a alma de passar pelas provas de que o corpo devia ser o instrumento”.
Centram-se as respostas na ideia da perda da oportunidade de reencarnação, da mesma forma como é visto, no Espiritismo, o homicídio. Isto é a regra geral. E como toda regra, há que se perscrutar acerca das exceções. Ou, como se diz na filosofia jurídica, a capitulação legal (penal) prevê os excludentes de ilicitude, os atenuantes e os agravantes, hipóteses que a limitação dos questionamentos do fundador do Espiritismo não pôde, àquela época, abranger.
Ficou, portanto, a teoria espírita originária circunscrita à chamada hipótese geral. Assim, todas as vezes em que, em qualquer área do conhecimento humano, se pretenda enquadrar o entendimento sobre dada temática a partir de uma premissa (única) geral, estará se cometendo equívocos ao tentar subsumir a tal generalidade, toda a gama de situações derivadas da especificidade de condutas, ainda mais em se tratando da diversidade (a mais ampla possível) dos caracteres que constituem cada um dos seres humanos em suas experiências na condição físico-material (encarnação).
Isto posto, chegamos à segunda hipótese, que é a gravidez resultante de um crime – o mais bárbaro dentre todos, porque circunstanciado à condição da natureza da mulher e sua hipossuficiência demonstrada em relação ao homem. Os crimes de natureza sexual – um capítulo destacado e com apenações graves dentro da conjuntura jurídico-normativa na totalidade dos países e sociedades ditos civilizado – são considerados em particularidades ímpares, uma vez que as ações humanas delituosas alcançam um setor que é o da liberdade de consciência e de ação e, portanto, sujeito a um “guarda-chuva” ainda mais amplo e especial de proteção.
Se a condição geral é a de que a mulher sofre um estupro – e a casuística abrange também estupros de vulneráveis (menores, portadores de deficiências físicas múltiplas e incapazes, do ponto de vista jurídico-legal), em atos levados a cabo por, via de regra, parentes e pessoas com situação de proximidade e intimidade com as vítimas, seria imposto uma tripla punição a essa mulher: o estupro em si; a exigência de manutenção da gravidez/gestação nessas condições (precárias); e, ainda, um efeito final, em dois quadrantes, dependendo do resultado: a) assumir uma filiação que será sempre lembrada como fruto de um ato não desejado, violento e criminoso; ou, 2) diante da obrigatoriedade de arcar com o filho gestado, sofrer uma sanção penal no caso de optar pela interrupção da gravides. Três experiências, conclusivamente, que irão marcar negativamente a sua existência para sempre.
Em relação aos que sacralizam a vida, como uma obrigação, diante de qualquer circunstância – inclusive violenta e criminosa – se materializa a visão correlacionada a não enxergar a Lei Universal como de amor, distanciando-se do Deus amoroso expresso em “O Novo Testamento”, a partir da dicção resultante dos atos e das predições de Yeshua, para, do contrário, entender e prescrever a questão sob forma cruel: a de que a criança precisa nascer, com sofrimentos para ela e para a mãe, além das demais pessoas diretamente envolvidas, numa linha retrógrada e superada de que tais sofrimentos farão os envolvidos evoluírem.
Por fim, ainda há a hipótese que, mesmo não constante do texto legal já destacado (Código Penal Brasileiro em consonância com a Constituição da República, de 1988), foi referendada pela Suprema Corte Brasileira, em relação ao anencéfalo. O Colegiado do Supremo Tribunal Federal, ao atuar com a prerrogativa de “jus legiferante”, realizou o que o Poder Legislativo não fez, que é a apreciação das situações fáticas, segundo ocorrências reiteradas na sociedade, para prescrever a legitimidade de determinados contextos. Na ocasião (abril de 2012), decidiu-se acerca da liberdade da gestante para decidir se interrompe a gravidez caso seja constatada, por meio de laudo médico, a anencefalia do feto (julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 54, ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde – CNTS).
Por que, então, impor a uma gestante e à sua família, a manutenção de uma gestação que, demonstradamente, por competentes pareceres médicos, que não representará a necessária totalidade do exercício da vida, a condição de independência e a saúde plena a um ser que não possui a plenitude de suas faculdades vitais, nem demonstra a condição de “vida inteligente”? Apenas para “defender” o caráter de “sacralidade” (religiosa) da vida? Não seria, aqui também, situação que deveria competir à mãe – e não ao Estado (Poderes Legislativo e Judiciário) a opção por manter ou não a gestação, inclusive por questões humanitárias?
Ora, na prática, cada circunstância e cada ato ou sucessão de atos são típicos, o que nos permite pressupor de que algumas individualidades, mesmo envoltas em tais ocorrências, poderão optar por “seguir a gestação” e assumir a filiação decorrente. Mas, em linhas gerais e obrigatórias em função da disciplina jurídica, impor a continuidade da gravidez, como regra, a todos, pertence à linha da criminalização do sofrimento para inocentes, mesmo que imputada a pena ao transgressor (estuprador).
Será essa a mensagem regeneradora do Espiritismo? Será essa nossa visão da Justiça Divina?
Que cada um se coloque na posição não de algoz, que “defende intransigentemente a vida”, que estabelece a vida como “dom (inalienável e intrasferível) divino, para, conforme toda a Pedagogia de Yeshua, agir em relação aos semelhantes – em especial, a mulher-mãe que está diante de uma gravidez problemática, por “n” fatores (deficiência fetal irrecuperável, risco de morte da gestante ou fruto do estupro).
E, mais ainda, que se pondere: por que a vida que se gesta, a condição feminina da maternidade (por pressuposto biológico exclusivo) precisa estar nas mãos de legisladores, executores, juristas e indivíduos da sociedade majoritariamente homens, em termos de opinião, decisão e retórica?
Finalizando, as atuais hipóteses descriminantes do aborto – e outras que a evolução histórico-jurídico-social permitirem devem ser demonstrativas e garantidoras da confirmação do sentido espiritual para os atos humanos. E não qualquer outra retórica ou prescrição jurídico-legal-processual.
Imagem de Jose Antonio Alba por Pixabay
Venho deixar a minha pitada porque sou mulher.Todos sabemos que a Espiritualidade deu a Kardec informações às vezes incompreensível para a época. O aborto nunca é feito sem sofrimento e angústia, nenhuma mulher toma essa decisão de ânimo leve, até porque o mesmo a pode levar à morte. O livre arbítrio de cada um dita a decisão e ninguém deve imiscuir-se nas escolhas de nenhum de nós. O aborto legal é uma escolha a que todas as mulheres têm direito e se for feito com a minimização de riscos é um avanço civilizacional. Claro que se as raparigas e os rapazes tiverem formação sobre sexualidade, abortar deixa de ser uma opção. A necessidade de abortar é uma prova de omissão e atraso na educação da nossa sociedade.