Por Marcus Braga
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Em tempos inflamados por discussões políticas, com fantasmas rondando a consolidação da nossa jovem democracia – que vive de sobressaltos –, às portas desse Carnaval pós-Covid de 2023, o movimento espírita se vê às voltas com mais uma polêmica bordejando as suas fileiras. E isto, justamente, por conta de manifestações públicas em uma ambiência espírita (um auditório da entidade espírita em que o mesmo sempre fala) de um conhecido médium e escritor, e que trouxe opiniões lamentáveis sobre situações recentes da vida política nacional.
Mais uma vez o módulo “treta” é acionado e entre depoimentos e falas, críticas e defesas apaixonadas, o debate público no meio espírita – e fora dele, também – se concentra na conduta do médium neste episódio, entendido de forma consensuada, como uma voz que de alguma forma representa o Espiritismo perante a sociedade. Não há dúvida que essa postura é objeto de críticas legítimas, mas talvez seja preciso pensar um pouco fora da caixa.
Muito já se falou sobre o evento e faz-se necessário ir mais além. Enquanto os espíritas aguardam a próxima manifestação, similar a esta, do citado personagem, e que virá – temos certeza! –, é preciso se lembrar de outro baiano, ilustre não nas fileiras espíritas, mas na arte musical, e que, apesar da sua loucura, trouxe uma frase que pode nos auxiliar na reflexão necessária nesse intervalo entre incidentes.
Sim, trata-se de Raul Seixas, o nosso Raulzito. Mais especificamente na música “As aventuras de Raul Seixas na cidade de Thor”, lançada no álbum “Gita”, em 1974, passados quase meio século. Nessa pérola autobiográfica um tanto desconhecida da MPB, Raul traça os seguintes versos:
“Tem gente que passa a vida inteira
Travando a inútil luta com os galhos
Sem saber que é lá no tronco
Que está o coringa do baralho”
Vem à mente o nosso Raul e esse trecho dessa música, por um motivo simples. Nessa guerra contra os galhos, talvez estejamos esquecendo o “coringa do baralho”. Isto é, por detrás de toda essa situação instalada, dessas manifestações opinativas de celebridades espíritas sobre eventos da política nacional – especialmente pela forma dissonante aos princípios esposados pela própria Doutrina dos Espíritos –, paira um problema crônico e autoalimentado do movimento espírita também nos últimos cinquenta anos: o endeusamento de médiuns.
Pois é, senhoras e senhores! Precisamos falar disso, com urgência e com centralidade. Uma doutrina alicerçada no trabalho de um homem, Kardec, que adotou um pseudônimo e omitiu os nomes dos medianeiros na sua obra, para que sobressaíssem as ideias, se vê, na sua versão “à brasileira”, totalmente centrada nas pessoas, especialmente os médiuns, credenciados por aclamação e entendidos como porta vozes de uma “espiritualidade superior”, de forma acrítica, à semelhança de verdadeiras pitonisas modernas.
Sem enfrentarmos essa questão, nós espíritas pensantes, sairá de cena um médium e virão outros. E os problemas, então, se perpetuarão, pois são questões estruturais, oriundas de apropriação de práticas de outras religiões e da falta de um entendimento do pensamento espírita. Neste contexto e cenário, repetidamente, a opinião do médium se reveste de um caráter sacrossanto, de modo que qualquer crítica que se faça às atitudes humanas do personagem soará como um sacrilégio. Por extensão, tomam-se como verdades tudo o que ele expressa, porque validadas pela conduta moral (leia-se a atividade assistencial e caritativa e a considerável obra literária, pela mediunidade) desse “intermediário”. Realmente, permanecemos validando e aplaudindo o oposto de tudo o que trouxe (e ensinou e praticou) Kardec.
De uma visão original, estruturada pelo Professor francês, na qual se valoriza analisar as mensagens e o seu conteúdo, de forma crítica, afastando de pronto e completamente a vinculação das mensagens ao médium ou à identidade do Espírito comunicante, assim como de evitar a “produção” de mensagens de Espíritos (?) que versem sobre assuntos que devam ser da alçada dos encarnados, fomos alimentando, ao longo de décadas, a ideia simplificadora de se ter um medianeiro “credenciado” e “ungido”, e que tal seria o substituidor de nossa razão, por apresentar ideias palatáveis ao senso comum, de modo a serem absorvidas e digeridas facilmente.
Tudo isso, sistemicamente, fragilizou muito o movimento espírita, afastando-o da visão kardequiana, justamente por colocar sua força em ídolos de pé de barro, por conta de uma visão na qual tudo que vier pelo canal oficial deve ser objeto de um sonoro amém. Em tempos difíceis, como os atuais, nos quais as instituições de diversas matizes se viram capturadas por ideologias políticas totalizantes, uma fragilidade dessa aflora e mostra o preço que acabamos por pagar por fugir da nossa essência.
Mas, não é só esse galho que sai desse coringa. Tem-se uma visível importação de logicas e estéticas de diversas denominações religiosas no Espiritismo, um afastamento do estudo da filosofia (e da ciência espírita) em função de romances e textos com traços de autoajuda, e ainda, a deturpação de conceitos espíritas para justificar ideias que se assemelham a doutrinas que já envergonharam a humanidade. Um caldeirão aquecido pela falta de serem observados (e respeitados!) os princípios kardequianos, atribuindo aos nos médiuns aquilo que eles não são.
A situação é, então, complexa e tem como efeitos muito mais gravosos do que manchar a reputação do Espiritismo. No âmbito interno experimenta-se de forma avassaladora, um desalento e um desânimo com o movimento, fazendo com que boas pessoas se afastem, por perceberem que, ao terem sido cortadas as raízes (Kardec) o que sobrou é algo muito diferente, que não tem agradado corações e mentes mais amadurecidos, o que pode nos conduzir, enquanto movimento, a uma extinção, ou pior, a uma deturpação de tal modo que não sejamos mais reconhecidos.
A cada evento desses, é preciso que as corajosas vozes do contraponto se levantem, apontando, na forma de argumentos, a impropriedade dessas falas, em especial em espaços ligados à prática espírita. Mas, antes, faz-se necessário que seja enfrentada a nossa relação com a mediunidade e com os médiuns, e o modo como tratamos os conteúdos de suas mensagens. Esse enfrentamento e o resultado positivo da crítica, embasada na lógica racional do Professor francês poderão funcionar como uma chave libertadora de nosso movimento, para enfim rompermos a “inútil luta com os galhos”.
É preciso agir para que a voz de um não seja vista como de todo movimento. Médium não é estágio prá santo, e nem tudo que um espírito desencarnado diz deve ser considerado absoluto. Certíssima sua reflexão Marcus e necessária.