O dia em que aviões de guerra despejaram poesia

Tempo de leitura: 4 minutos

Por Jamil Chade

Passo meus dias lendo informes militares, de agências humanitárias e de grupos de direitos humanos denunciando o uso indiscriminado de bombas sobre populações indefesas. Recebo, dia após dia, tabelas com números de mortos, feridos e amputados. Mesmo quando os conflitos parecem desaparecer das páginas dos jornais, lhes garanto: as mortes continuam ocorrendo.

Normalizamos os crimes, esquecemos da Ucrânia, nem sabemos onde fica El Fasher. Enquanto escrevo esse texto, recebo mais um comunicado em meu email: quatro escolas foram atacadas em Gaza nos últimos quatro dias. Dezenas de mortos. Temos o direito de cruelmente virar a página?

Acho que leio cada um desses informes na esperança de me deparar com a repetição da história. Não a do padrão dos crimes. Mas um episódio específico que me marcou: quando soube do dia em que aviões de guerra despejaram poesia.

Um bombardeio de poesia.
Em suas estrofes, uma repetição martelada sem fim, como uma obsessão, do desejo da liberdade. E de amor.
E ao poder de uma palavra
Recomeço minha vida
Nasci pra te conhecer
E te chamar
Liberdade
Nesta semana, somos todos um pouco resistência, diante dos resultados das urnas na França.
Temos a obrigação de ser esperança.
Continua após a publicidade

Saudações democráticas

Jamil

Obs: No Brasil, o poema ganhou uma tradução de luxo, de Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade

Liberdade

Nos meus cadernos de escola
Nesta carteira nas árvores
Nas areias e na neve
Escrevo teu nome
Em toda página lida
Em toda página branca
Pedra sangue papel cinza
Escrevo teu nome
Continua após a publicidade
Nas imagens redouradas
Na armadura dos guerreiros
E na coroa dos reis
Escrevo teu nome
Nas jungles e no deserto
Nos ninhos e nas giestas
No céu da minha infância
Escrevo teu nome
Nas maravilhas das noites
No pão branco de cada dia
Nas estações enlaçadas
Escrevo teu nome
Nos meus farrapos de azul
No tanque sol que mofou
No lago lua vivendo
Escrevo teu nome
Nas campinas do horizonte
Nas asas dos passarinhos
E no moinho das sombras
Escrevo teu nome
Em cada sopro de aurora
Na água do mar nos navios
Na serrania demente
Escrevo teu nome
Continua após a publicidade
Até na espuma das nuvens
No suor das tempestades
Na chuva insípida e espessa
Escrevo teu nome
Nas formas resplandecentes
Nos sinos das sete cores
E na física verdade
Escrevo teu nome
Nas veredas acordadas
E nos caminhos abertos
Nas praças que regurgitam
Escrevo teu nome
Na lâmpada que se acende
Na lâmpada que se apaga
Em minhas casas reunidas
Escrevo teu nome
No fruto partido em dois
de meu espelho e meu quarto
Na cama concha vazia
Escrevo teu nome
Em meu cão guloso e meigo
Em suas orelhas fitas
Em sua pata canhestra
Escrevo teu nome
Continua após a publicidade
No trampolim desta porta
Nos objetos familiares
Na língua do fogo puro
Escrevo teu nome
Em toda carne possuída
Na fronte de meus amigos
Em cada mão que se estende
Escrevo teu nome
Na vidraça das surpresas
Nos lábios que estão atentos
Bem acima do silêncio
Escrevo teu nome
Em meus refúgios destruídos
Em meus faróis desabados
Nas paredes do meu tédio
Escrevo teu nome
Na ausência sem mais desejos
Na solidão despojada
E nas escadas da morte
Escrevo teu nome
Na saúde recobrada
No perigo dissipado
Na esperança sem memórias
Escrevo teu nome
Continua após a publicidade
E ao poder de uma palavra
Recomeço minha vida
Nasci pra te conhecer
E te chamar
Liberdade

Em francês

Liberté

Sur mes cahiers d’écolier
Sur mon pupitre et les arbres
Sur le sable de neige
J’écris ton nom
Sur les pages lues
Sur toutes les pages blanches
Pierre sang papier ou cendre
J’écris ton nom
Continua após a publicidade
Sur les images dorées
Sur les armes des guerriers
Sur la couronne des rois
J’écris ton nom
Sur la jungle et le désert
Sur les nids sur les genêts
Sur l’écho de mon enfance
J’écris ton nom
Sur les merveilles des nuits
Sur le pain blanc des journées
Sur les saisons fiancées
J’écris ton nom
Sur tous mes chiffons d’azur
Sur l’étang soleil moisi
Sur le lac lune vivante
J’écris ton nom
Sur les champs sur l’horizon
Sur les ailes des oiseaux
Et sur le moulin des ombres
J’écris ton nom
Sur chaque bouffée d’aurore
Sur la mer sur les bateaux
Sur la montagne démente
J’écris ton nom
Continua após a publicidade
Sur la mousse des nuages
Sur les sueurs de l’orage
Sur la pluie épaisse et fade
J’écris ton nom
Sur les formes scintillantes
Sur les cloches des couleurs
Sur la vérité physique
J’écris ton nom
Sur les sentiers éveillés
Sur les routes déployées
Sur les places qui débordent
J’écris ton nom
Sur la lampe qui s’allume
Sur la lampe qui s’éteint
Sur mes maisons réunies
J’écris ton nom
Sur le fruit coupé en deux
Du miroir et de ma chambre
Sur mon lit coquille vide
J’écris ton nom
Sur mon chien gourmand et tendre
Sur ses oreilles dressées
Sur sa patte maladroite
J’écris ton nom
Continua após a publicidade
Sur le tremplin de ma porte
Sur les objets familiers
Sur le flot du feu béni
J’écris ton nom
Sur toute chair accordée
Sur le front de mes amis
Sur chaque main qui se tend
J’écris ton nom
Sur la vitre des surprises
Sur les lèvres attendries
Bien au-dessus du silence
J’écris ton nom
Sur mes refuges détruits
Sur mes phares écroulés
Sur les murs de mon ennui
J’écris ton nom
Sur l’absence sans désir
Sur la solitude nue
Sur les marches de la mort
J’écris ton nom
Sur la santé revenue
Sur le risque disparu
Sur l’espoir sans souvenir
J’écris ton nom
Continua após a publicidade
Et par le pouvoir d’un mot
Je recommence ma vie
Je suis né pour te connaître
Pour te nommer

Liberté

Publicado originalmente no UOL. Publicado no ECK com autorização do autor. 

Imagem de Pascal Wiemers por Pixabay 

Written by 

Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.