Marcelo Henrique e Beto Souza
A função política do Espiritismo existe, mas noutro sentido. Não lhe cabe nenhum lugar nas disputas de cargos políticos, mas lhe cabe a formação espiritual dos homens para que exerçam, como cidadãos, influência benéfica na solução dos problemas políticos, através do bom-senso e da retidão da consciência, quando levado pelas circunstâncias, chamado ou convocado para funções administrativas em áreas do Estado. O seu esforço para o aperfeiçoamento das estruturas políticas, o seu exemplo de respeito a todos que agem nessa área, o desinteresse puro que demonstrar no exercício de suas funções, sacrificando-se pelo bem público não constituem, nesses casos mistura de interesses materiais com objetivos espirituais.
José Herculano Pires.
Diz-se, em sociologia política, que política é a “arte de (bem) governar”. Idealmente, claro. E, não são poucas as vezes que, em conversas, reportagens ou palestras, nos deparamos com o bordão “cada povo tem o governo que merece”. Será mesmo? Vamos ver…
Recentemente, pudemos ler uma entrevista com uma parlamentar brasileira, umbilicalmente vinculada à religião evangélica, pastora e deputada. Mas como? Pastora e Deputada? Sim! Mas, isto não é novidade, não é mesmo? A nossa estupefação – e, talvez, também sua – deve ser a mesma que me invade: Jesus não disse que não se poderia servir a dois Senhores? Pois é… O ofício religioso deveria ser, legalmente, incompatível com o exercício da atividade política, parlamentar ou governamental, assim como das funções judiciárias.
O ofício religioso institucionalizado, em si, é uma expressão de poder, que atuou de forma praticamente absoluta em épocas anteriores à separação laica do Estado e ainda hoje se faz presente como uma das estruturas que sustenta o sistema social em vigor, através de seus dogmas fideístas, organizados em normas de “dominação carismática”, nas palavras do sociólogo alemão Max Webber (1864-1920). A união entre a política e a religião, como observamos nos estados teocráticos, representa uma distorção da democracia a ser evitada, pois torna a sociedade passível de ser dominada por uma maioria formada a partir dos interesses imediatos de grupos específicos, com o apoio irrestrito da fé.
Lato sensu, as instituições, as organizações, as funções, cargos e, também, os mandatos políticos são necessários para a vida social e alguém tem que representar o povo, mormente no poder legislativo. E são, todas elas, idealmente neutras em sua origem, mas suscetíveis à aquilatação (valores) do uso que lhes for dado.
Não havendo proibições, os evangélicos (e os católicos, igualmente) usam da sua força associativa (ou corporativa), indicando e apoiando candidato(s) para defender(em) seus interesses nos diversos planos da ação política, para, mais à frente, obterem vantagens, na defesa de questões materiais ou ideológicas de conformidade com os preceitos e argumentos de crença que professam.
E o que fazem os espíritas? Via de regra, vivem no romantismo de que “religião é coisa do plano espiritual e, portanto, não se coaduna com as manifestações materiais”, como já ouvimos aqui e alhures. Muito nobre! Realmente, não se misturam: vivem em planos paralelos, mas se acham interligadas na vida humano-espiritual.
A presente edição de nossa revista eletrônica reúne alguns artigos que entrelaçam Política e Espiritismo (ou Espiritismo e Política), de modo abrangente e plural, suscitando digressões e debates.
Célia Aldegalega supera a esquerdofobia, resgatando a importante contribuição de pensadores identificados com o debate sobre a desigualdade social, nos levando a compreensão de que as mãos, direita e esquerda, pertencem a um mesmo corpo humano, ser social que avança em coletividade, consolidando o progresso moral. A autora realiza uma análise sociológico-histórica da proposta espírita, considerando os contextos culturais da Europa do século XIX e seus antecedentes, assim como da conjuntura atual, para propor o envolvimento dos espíritas na ação transformadora dos meios coletivos, em seu texto “Faz política quem vai, e quem fica”.
Com “O Espiritismo e a legítima luta por um mundo melhor”, Manoel Fernandes Neto frisa a imperiosa e inafastável necessidade de libertar o Espiritismo de quaisquer amarras religiosas, para poder, de fato, abraçar a autonomia de pensamento e ação. Com olhar atento, o autor levanta importantes questionamentos sobre a dificuldade de debate entre os defensores de bandeiras opostas, num patrulhamento mútuo que impede a livre manifestação do pensamento, que, numa forma de censura, abafa a voz daqueles que pensam de forma diferente e ao mesmo tempo pergunta: Será que toda opinião merece lugar ou devemos tomar uma atitude ativa e combativa frente as que afrontam os direitos básicos e universais da humanidade? Neste sentido, é crucial que se produzam conteúdos e material para reflexão, colocando temas como este em pauta, negando com veemência adotar o silêncio em relação ao que ameaça o humanismo, considerado este, vera essência do Espiritismo.
Em sintonia com a proposição acima, Nícia Cunha nos brinda com o seu “Por que o espírita deveria ser apolítico?”, diferenciando a verdadeira ação política das lutas da politicagem partidária, demonstrando a necessária participação ativa dos espíritas em questões políticas, pautadas na defesa de seus fundamentos humanistas, combatendo as injustiças sociais. Concita, ela, os adeptos espíritas a mostrarem, em sociedade, a excelência dos conceitos espíritas, para o embasamento das leis e políticas públicas, abandonando a falsa premissa de que “Espiritismo e Política não se misturam”, demonstrando que o progresso moral se realiza não pela espera passiva de uma intervenção “milagrosa” dos bons espíritos, mas pelo papel ativo dos espíritas, abandonado a neutralidade omissa e entendendo a impossibilidade em falar de (e ter-se) cidadania sem incluir ação política, assim como não se pode tratar de ação política sem comunicação.
Geylson Kaio reforça o tema da adesão espírita no seu “Devemos participar das políticas públicas?”, propondo que, individual e coletivamente, a comunidade espírita desenvolva a consciência da participação e contribuição social consciente dos espíritas no âmbito das políticas públicas do Brasil. O autor nos faz refletir sobre a inclusão social através de números, que apontam quantos na sociedade brasileira ainda não possuem o mínimo capaz de impulsionar suas caminhadas na direção de uma autonomia efetiva, o quanto nossos programas sociais precisam avançar para realmente promover o desenvolvimento humano. O esforço continuado de cada um dos atores sociais levará, segundo Geylson, à mudança nos quadros flagrantes de injustiça social. Uma atitude, portanto, propositiva de cidadania, onde os valores éticos, morais e espirituais estarão presentes e atuantes nas relações sociais.
Tratando de “A Política em moldes espíritas”, Raimundo de Moura Rêgo Filho disserta sobre a missão do Espiritismo em, a partir da intermediação entre os dois mundos, material e espiritual, contribuir efetivamente para a proposição de uma vida (social) regenerada, a partir da intermediação entre os dois mundos, material e espiritual. Trabalhando as origens do termo na pólis (cidade estado) grega, o autor identifica a modificação progressiva das leis humanas na direção das leis divinas, inscritas na consciência e compreendidas gradualmente a medida que o espírito progride moralmente, superando a politicagem em favor de uma política de valorização do bem comum, melhorada em moldes morais e intelectuais, o indispensável alimento para o sadio crescimento da recém-nascida sociedade justa.
Depois, numa abordagem intitulada “A imersão política na essência ética”, Nelson Santos desconstrói a falácia da neutralidade espírita, pontuando respostas claras em seus fundamentos, delimitando um norte moral a ser seguido, ao mesmo tempo em que defende uma ativa postura política de caridade e fraternidade, para combater o orgulho e o egoísmo em todas suas manifestações sociais. Objetivo, o autor resgata a essência da própria “pedra fundamental” espírita – “O livro dos Espíritos” – que elenca várias questões versando sobre a ação social e uma indiscutível contribuição política, sob o aspecto filosófico que o Espiritismo oferece à sociedade humana, a fim de que esta se estruture, organize e funcione em termos de verdade, justiça e amor traduzindo-se, por fim, em justiça social.
Por fim, Leopoldina Xavier, com o seu “Participar para evoluir!”, discorre sobre a aplicação da educação política para a lei do progresso coletivo, oposta ao conceito (limitante) da educação pelo progresso individual, haja vista que um depende do outro. O grau de conscientização moral individual deve estar conectado diretamente com a forma de organização das estruturas sociais coletivas, com um grau crescente de solidariedade orgânica em diálogo com o pensamento do cientista político Émile Durkheim (1858-1917) sobre a organização das sociedades modernas. Para Leopoldina, a sociedade, quanto mais desenvolvida, mais contribui para elevar o homem em sua jornada espiritual, quer no campo social, quer no campo humano, não sendo possível separar a evolução do homem, enquanto ser social, da política.
O Espiritismo, destarte, compreende os ideais de renovação da humanidade, através da transmissão de corretas informações àqueles que tiverem “ouvidos para ouvir e olhos para ver”. Só que não se faz Espiritismo apenas e tão-somente no interior das Casas Espíritas. Para tornar-se crença comum, como afiançado pela Falange da Verdade a Kardec, a Doutrina precisa ganhar as ruas, não pela pregação e doutrinação, mas pela presença (ativa) de seus adeptos e divulgadores nos diversos cenários da vida humana. Participando, e não se esquivando, com a desculpa de que tudo evoluirá, um dia…
As perguntas iniciais deste Editorial, assim, ecoam em cada espírito encarnado neste quadrante da vida individual-espiritual e social dos que se encontram na Terra. Como você as responderia?
Boa Leitura!
Acesse os textos da edição em cada link:
O Espiritismo e a legítima luta por um mundo melhor, por Manoel Fernandes Neto
Devemos participar das políticas públicas?, por Geylson Kaio
A Política em moldes espíritas, por Raimundo de Moura Rêgo Filho