O Eurocentrismo do Espiritismo Originário e o Nosso, por Felipe Viana e Marcelo Henrique

Tempo de leitura: 4 minutos

Felipe Viana e Marcelo Henrique

Imagem de TheAndrasBarta por Pixabay

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Ah esse eurocentrismo do movimento espírita brasileiro eurocêntrico…
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O eurocentrismo é tão fascinante até que se torna insuportável tal como o populismo… Deixo claro que o espírita aqui descrito é aquele contaminado pelo misticismo, pela santificação de médiuns (e guias!) e pelo sincretismo religioso de vários matizes. É o indivíduo que integra uma classe média elitista, despolitizada, roustanguista e que possui uma marcante fonte para a sua idolatria, paixão e obsessão: a Europa.

Elitista, porque se acredita merecedora de missões espirituais destacadas. Despolitizada porque entende que “as coisas de Deus não se misturam com as de Mamon” (muito embora não saiba nem quais são umas e outras, já que, em assim sendo, demonizariam o dinheiro, por ser coisa do Rei material) e roustainguista porque entendem Jesus como um ser nascido da virgem, sem corpo físico, plasmando sobre as iniquidades humanas.

Ah! Quantas vezes já não houve atividades espiritas, de jovens do estado do Rio de Janeiro, nas cidades litorâneas, que beiram a Baía de Guanabara, achando que estão no Mar Báltico? Ah! Por quantas e quantas vezes já não ouvimos ou lemos que somos, os espíritas, os franceses reencarnados e que aqui, na “pátria do Cruzeiro”, foi replantada a “árvore do Evangelho” (de Jesus – sic!), que foi transplantada das terras francesas? Ah! Por quantas vezes tivemos de engolir (em seco!) o ufanismo da insígnia dada por um singelo literato – mas tomada como cláusula pétrea espiritual – de que somos “o coração do mundo e a pátria do Evangelho”?

Ah! Quantas vezes os espíritas paulistas que, em seus costumeiros estudos, fazem profundas transcrições, com referências à (bela e revolucionária) cultura francesa, como se estivessem em Paris, coordenando as reuniões da pioneira Sociedade Parisiense de Estudos Espiritas (SPEE), e falam frases em francês, como se fossem os mesmos Espíritos reencarnados, alimentando – em si e nos outros – aquela aura sincrética e mística?

Ah! Quantas vezes espiritas de Vitória e Florianópolis, ou Santos ou Porto Alegre, todas cidades litorâneas, por algum delírio pensam estar, ali, ou de novo, em Lisboa e Madri?

E os espíritas do nordeste, de João Pessoa e Salvador, ou de Recife ou Natal, pensam que, para não se situarem na Europa “chique”, estão na região balcânica – que também é situada Europa?

E os espíritas do norte e centro-oeste do Brasil que pensam estar no leste europeu, esquecendo-se que nessa região há muitos povos originários e que fazem parte da nossa rica biodiversidade – que não é, apenas, orgânico-corporal, mas cultural-ideológica?

E, na região sul, aqueles que, por causa do clima frio e da circunstância histórica, cidades que foram colonizadas por povos europeus, em sua maioria, os espíritas pensam estar, ainda e de novo, na Alemanha, Holanda, Bélgica, Luxemburgo, Áustria e Suíça?

E, para finalizar, o que dizer desses espíritas tupiniquins, desse Brazilsão imenso – tal qual um continente – que, quando vão citar pesquisadores espiritas, apenas se recordam de León Denis, Gabriel Delanne e Camille Flammarion, por exemplo, se esquecendo dos notáveis pesquisadores, filósofos e cientistas espiritas, de largo estofo e produção bibliográfica, além do pioneirismo de estarem na contracultura do movimento religioso majoritário, os latinoamericanos (“eu sou apenas um rapaz latinoamericano”, cantou com maestria Antônio Carlos Bechior), como Herculano Pires, Deolindo Amorim, Hernani Guimarães Andrade, Henrique Rodrigues, Hermínio Corrêa de Miranda, Jorge Rizzini e Jaci Regis?

Ora, pois… Esse espírita padrão classe média, cidadão “do bem”, eurocêntrico, elitista, proselitista, com seus pensamentos conservadores e reacionários é a cara do espiritismo brasileiro: místico, fanático, sincrético, de “mesa branca”, preconceituoso (misógino, homofóbico, racista estruturais – contra negros e índios -, xenófobo, apolítico, neutro, autoritário e roustanguista.

Não é atoa, que esse mesmo tipo, que idolatra médiuns espíritas e “guias” espirituais, se identificam e apoiam governos nefastos e distantes da caridade, tolerância, misericórdia e amor que tanto pregam na casa espírita. E se identificam com “dísticos” de impacto como “Brasil acima de tudo; Deus acima de todos”, distanciando-se de duas premissas contidas na base filosófica espírita: não há qualquer necessidade de afeição desmedida à pátria (não leram ou não entenderam o item 317, de “O livro dos Espíritos”) ou elevação da divindade a qualquer patamar superior, já que o Criador não se imiscui nas coisas terrenas nem requer adoração exterior, por meio de slogans ou vocativos (desconhecem ou desdenham do contido no item 953, do mesmo “O livro dos Espíritos”).

Ora, amigos… Se quisermos um Espiritismo verdadeiramente universalista, popular, progressista, progressivo, laico, racional e anticolonial, humanista e inclusivo, para ser, na prática, uma das expressões do Consolador Prometido pelo Mestre Jesus à Humanidade (“O evangelho segundo o Espiritismo, Capítulo IV, Item 3) precisamos, além de termos Allan Kardec como base essencial, nos aprofundarmos nos autores espíritas kardequianos da América Latina – e os citamos, acima – como representantes da atualidade do pensamento dos Espíritos Superiores (na Codificação) e do próprio Kardec – e nos dedicarmos à criação e consolidação de um movimento espírita brasileiro que seja, de fato, em todas as suas práticas, na estrutura e na atuação de suas pequenas, médias e grandes instituições, verdadeiramente universalista, popular, progressista, progressivo, laico, racional e anticolonial, humanista e inclusivo, como já dito, e, por extensão, transformador, pois olhando para as nossas raízes históricas, iremos entender que não estamos na Europa e que nunhuma transformação na sociedade virá através das costumeiras práticas da palestra pública (pregação litúrgica), do passe magnético (bênção religiosa), da água fluidificada (água benta), da desobsessão (mero exorcismo), do atendimento fraterno (com intenção proselitista) ou do culto do Evangelho no Lar (como se houvesse uma redoma protetora dos Espíritos para nossas residências).

É preciso deseurocentrizar, descolonizar e desigrejificar o Espiritismo… E hoje, não amanhã, nem depois!

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

2 thoughts on “O Eurocentrismo do Espiritismo Originário e o Nosso, por Felipe Viana e Marcelo Henrique

  1. Que grande murro no estômago…para os que se desviaram do Espiritismo que devia ter Kardec como fio condutor em vez dum Espiritismo religioso adaptado a seu jeito igrejeiro. Parabéns aos autores do texto.

  2. Texto assustadoramente bom, que nos remete à uma reflexão sobre real Espiritismo a ser estudado e praticado!!

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