O Evangelho ao pé-da-letra, por Marcus Vinicius de Azevedo Braga

Tempo de leitura: 2 minutos

Por Marcus Vinicius de Azevedo Braga

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Citar trechos isolados que já motivaram tantos enganos e equívocos são as armadilhas que, pela pretensão de proteger a essência dos evangelhos, se tornam, ao final, uma fuga dessa essência, consistindo em instrumentos de imposição de ideias, às vezes bem estranhas, ainda que palatáveis.

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Igor gabava-se de praticar o evangelho ao pé-da-letra. Cumpria as designações de Jesus à risca, sem espaço para interpretações ou para adaptações. Fidelidade sempre!

Diante de uma divergência na casa espírita, ele instaurava logo uma contenda, invocando que “Jesus não veio trazer a paz e, sim, a espada”. Frente a um amigo em dificuldades, sacava logo o que “quem com ferro fere, com ferro será ferido”, para justificar as mazelas apresentadas.

E assim, combinando literalidade com conveniência, Igor ia seguindo seu caminho na trilha do evangelho, justificando seus posicionamentos e jogando evangelho nas pessoas com força, pintando um “Jesus do Igor”, bem diferente da sua essência.

Certo dia, à noite, durante um sonho, viu a figura de Jesus a lhe dizer: “– Igor, prenda-se a essência da minha vida ao ler o evangelho! Você verá que não era isso que eu queria dizer!”.

Sobressaltado, Igor acordou e indignado reclamou: “– Ora, mas até Jesus quer contrariar o que está escrito no evangelho! Que absurdo!”…

Apesar de espíritas, vivemos em uma sociedade marcada por séculos de um cristianismo preso a formalidades, ritos, discursos de força e intimidação, nos quais o evangelho se torna um livro sagrado e inquestionável, o que dá força a essa visão de literalidade que mais distorce do que fideliza.

E isso nos contamina, também. Basta ver como nos reportamos, por vezes, as perguntas de “O livro dos Espíritos”, decoradas, até no número, e tomadas, por vezes, fora do contexto.

Essa fidelidade a trechos isolados de forma descontextualizada é, na verdade, uma determinada forma de interpretação e possui grande potencial de deturpação e manipulação, porque molda a conveniência das “verdades” que se quer vender.

Tanto em relação ao evangelho de Jesus quanto ao Espiritismo, interessa a percepção da essência da mensagem, que é fruto de estudos aprofundados e harmonizados nesse conjunto de conhecimentos.

A mensagem de Jesus é o amor. E em uma forma profunda e complexa. Isso é mais sagrado do que qualquer livro. O estudo dos seus ditos, de seus atos, ao longo do evangelho, reforça isso. Algo diferente disto pode derivar desde problemas de tradução até mudanças ao longo das diversas versões, ou mesmo de uma interpretação enviesada, daquelas que transformam Deus em um senhor dos exércitos.

Infelizmente, essa adesão à literalidade ainda encontra espaço num mundo que busca e se satisfaz com bulas para regular os cotidianos, o que nos faz ler o evangelho e as obras espíritas com um olhar estranho e distante do que preconiza o próprio Espiritismo. Sutilezas, que revelam que também nós estamos um tanto distantes ainda de entender a essência do Espiritismo.

Citar trechos isolados que já motivaram tantos enganos e equívocos são as armadilhas que, pela pretensão de proteger a essência dos evangelhos, se tornam, ao final, uma fuga dessa essência, consistindo em instrumentos de imposição de ideias, às vezes bem estranhas, ainda que palatáveis.

Importa que o pé-da-letra não se converta em um pé na porta, pela truculência das ideias absurdas que insistem em se sobrepor à razão, contrariando não só a raiz da mensagem de Jesus, mas a ferramenta de segurança que Kardec nos legou, diante dessas dúvidas interpretativas.

Imagem de amurca por Pixabay

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

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