O fetiche por “Nosso Lar”, por Maria Cristina Rivé e Marcelo Henrique

Tempo de leitura: 5 minutos

Maria Cristina Rivé e Marcelo Henrique

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Grande parte dos relatos contidos nas obras andreluizianas e em outros romances que lhe seguiram e que continuam a ser publicados, podemos inferir que aquilo que é descrito, os cenários, as pessoas, as presenças animais são construções mentais, individuais ou coletivas, ou, em muitos casos, a mera continuidade da convivência do desencarnado num ambiente “de encarnados”, locais da vida físico-material.
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Herculano Pires, filósofo espírita paulista, fala em sua Obra acerca de um grupo de Espíritas que gostam de inserir na Doutrina Espírita crenças pertencentes a linhas de pensamento distintas da do pensamento de kardeciano. Alcunhou-os de “novidadeiros” [1] [2]. Estes seriam identificados pela tentativa de cooptação dos demais adeptos das ideias espíritas, em agremiações (centros ou grupos espíritas) e pelos meios midiáticos, ao introduzirem ideias ou teorias “novas”, como sendo “complementares” à teoria filosófica do Espiritismo, para atrair simpatizantes, com base em uma pseudológica que não resiste à comparação com princípios e fundamentos espíritas.

A Obra de Chico Xavier, neste sentido, possui um caráter deveras distinto do trabalho de Kardec, por apresentar “novidades” como fruto da visão PESSOAL do autor espiritual (André Luiz) e seus diálogos com outras entidades desencarnadas que lhe “ensinaram” como seria a vida fora do corpo físico. E, por isso, foram “agregadas” ao conjunto espírita, como uma forma “moderna” (no século passado) de identificar e explicar situações no “mundo espiritual”. Mas não o são. Porque elas contrariam minimamente aquilo que consta da teoria fundamental espírita (“O livro dos Espíritos”) e, mais especificamente, todo o exame, criterioso e detalhado das situações pós-morte peculiares a Espíritos do nosso nível (“prova e expiação”) e as relações travadas entre os desencarnados e deles com os encarnados que ainda estão vivendo na Terra.

Tais “explicações” e “contextualizações” são, todavia e lamentavelmente, muito aceitas e aclamadas pelos espíritas em sua maioria, incluindo pessoas tidas como estudiosas, ocupando posições de liderança e coordenação, como dirigentes de grupos de estudo e de instituições, assim como expositores – inclusive os mais “requisitados” e “aclamados” pelas multidões. Estas pessoas, tanto as que ministram cursos e conferências quanto as que assistem e frequentam estes meios, não percebem que tais relatos são, apenas e tão-somente, relatos pessoais, opiniões sem lastro lógico-filosófico-científico-racional, de um ou de grupos de desencarnados que percebem daquela forma o Mundo Espiritual.

Por ser, neles, muito forte a materialidade e a necessidade de artefatos e elementos “semimateriais” (compatíveis com a existência física, cuja realidade acabaram de deixar, com a morte), em ilusões individuais e coletivas. O próprio Espiritismo informa, segundo as trinta e duas obras de Kardec, que há o poder criativo (intelectual) de “plasmar”, isto é, construir cidades, monumentos, estruturas organizacionais idênticas às do mundo material, a partir da força do pensamento, repetimos, individual ou mesmo coletivo. Tais pessoas, em estados ilusórios e apaixonados, saudosas da vida e daquilo que tinham (afeições, gostos, pendências, desejos, convivências, famílias, amores, etc.), não se apercebem da realidade vigente no Mundos dos Espíritos. Em especial, a afirmação peremptória de que, no Mundo Espiritual – que é distinto do Mundo Material – não há lugares circunscritos (vide, a propósito, “O livro dos Espíritos”, questão 1012).
Talvez por isso Nosso Lar tenha se tornado mesmo, entre os adeptos das ideias espíritas, um sonho de consumo, um objeto de apego, um desejo fervoroso e, até, como ilustra o título deste artigo, um fetiche, como forma de algo perseguido pelos humanos, que, desde já, durante a vida física, imaginam como será a sua (futura) vida, espiritual, participando da rotina de tais “colônias”, como que “aproveitando a estadia” naqueles “locais”, que são fictícios ou fruto da imaginação. Como disse, mesmo, o próprio Chico Xavier, em algumas conversações e entrevistas registradas em jornais espíritas, na mesma época dos romances da “série André Luiz”, esses espíritas parecem viver mais no futuro, numa pretensa vida espiritual, esquecendo-se de viver o presente e participar do mundo material – que é, também, importante para a progressão dos Espíritos.

Fazemos, aqui, uma analogia com o viver num mundo submetido aos ideais do Capitalismo: ele no impele a ter necessidades (muitas, desnecessárias) e ao apego aos bens acumulados. Entendem os humanos, em geral, que é a posse destes bens e as riquezas os elementos diretamente ligados à nossa importância na sociedade. Então, deixá-los para trás, abandoná-los, deixar que outros administrem o que tão arduamente conquistamos, figura como algo bastante difícil.

Nos relatos captados ou selecionados por Kardec, nos onze anos da publicação da “Revue Spirite”, diversos foram os desencarnados que relataram esse apego, esse “amor” desmedido, essa vinculação aos ambientes e aos bens materiais. E o quanto sofriam ao continuarem presos, imantados, vinculados aos elementos da vida que deixaram.

E é justamente por isso que, ao nos depararmos com grande parte dos relatos contidos nas obras andreluizianas e em outros romances que lhe seguiram e que continuam a ser publicados e com boas tiragens e preferência dos leitores de temas espirituais, podemos inferir que aquilo que é descrito, os cenários, as pessoas, as presenças animais são, em muitos casos, a continuidade da convivência do desencarnado num ambiente “de encarnados”, isto é, a casa onde residiu, as residências de amigos e familiares, os lugares onde trabalhou, estudou, conviveu, como se ainda fizessem parte daqueles ambientes. Imaginam, assim, fazer o que sempre fizeram, movimentarem objetos, abraçarem e beijarem seus afetos e defenderem seus ideais, se relacionando com os Espíritos – seja outros desencarnados como eles, seja os próprios encarnados que se DESPRENDEM do corpo, momentaneamente, durante o repouso físico, em DESDOBRAMENTOS. Fatos, aliás, explicados pela teoria espírita (a de Kardec, claro!).

Assim como, em muitas situações, nós, humanos, estamos “sonhando acordados”, desejando que o nosso futuros seja melhor, imaginando situações que nos envolvem ou que são desejos em relação aos nossos entes queridos, o mesmo se dá em relação à tais situações da vida de desencarnados, onde desejamos e parecemos estar vivendo em um “conto de fadas espiritual”.
Podemos, de outro modo, entender o alcance da letra da música de Fátima Guedes, imortalizada por Leila Pinheiro, e que se baseia em uma célebre frase de Tom Jobim: “a gente leva da vida a vida que a gente leva”. Ela é bem mais profunda do que possamos imaginar e pode servir de alerta para os nossos reais objetivos e para a finalidade da vida (encarnada). O Espiritismo nos aponta para a necessidade inadiável do progresso individual e na atuação em relação à construção de uma sociedade fraterna, solidária e plena de valores indestrutíveis – como sabedoria, amizade, companheirismo e cooperação em relação a todos.

Porém, para tal faz-se necessário o ato de legítima e sincera vontade de desconstruir os vícios acumulados ao longo de encarnações, de usar e desenvolver nossa racionalidade, para entender a logicidade da obra de Kardec. Isso pode ser difícil, penoso demanda tempo, coragem e, provavelmente, nos coloque na contramão deste mundo tão, tão material. Pode ser que sejamos excluídos, rechaçados, ridicularizados. Valeria a pena? A resposta é pessoal.

Seria por isso que os espíritas, tão imersos na materialidade, sonham com Nosso Lar? Essa ideia de um Paraíso (futuro) acalmaria o (nosso) medo em relação ao futuro e daria a “certeza” de que continuaríamos com nossos títulos e nossas posses, sem entender que, despidos do corpo material, nos encontramos em verdade conosco mesmos?
Que possamos refletir…

Notas dos Autores:
[1] Herculano adota essa expressão no livro “O Centro Espírita”.
[2] Em três de suas obras, Herculano denunciou deturpações doutrinárias nas décadas de 1960 e 1970, no meio espírita brasileiro: “Na hora do testemunho”, “A pedra e o joio” e “O verbo e a carne”. E, no curso de sua relação e parceria com Chico Xavier – Herculano e o médium escreveram, juntos, cinco obras, o filósofo paulista, inicialmente “entusiasmado” com os relatos andreluizianos, depois, com mais acuidade e propriedade, censura os elementos contidos nos livros psicografados, chamando André Luiz de “neófito muito entusiasmado

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

5 thoughts on “O fetiche por “Nosso Lar”, por Maria Cristina Rivé e Marcelo Henrique

  1. Não conheço o livro, “O nosso lar” embora já tenha visto imagens do filme, reconheço que é fertil, a imaginação do espírito que criou esse ambiente mental. Cada um pode criar as imagens mentais que lhe parecerem mais reais. Sempre será uma criação mental individual de um espírito . Estudando Kardec, sabemos separar as águas, é uma questão de bom senso e raciocínio lógico. Excelente artigo.

  2. Mais um ótimo artigo do grupo ECK. Indago se este não seria um tema adequado para pesquisa mediúnica? Afinal de contas o relato da turma do outro lado é que poderia trazer mais luz sobre o assunto.

  3. Mais que nunca, em especifico, dirigentes, coordenadores de estudos, bem como palestrantes espíritas em suas pregações direcionam, induzem e conduzem a massa espectadora espírita, castrando-os de o livre pensar. Daí, acredito que detalhes importantes a compreensão de textos, artigos, mais ainda, dos estudos espíritas passa desapercebidos, mediante a paralisia (Mental) de quem transmite e a atrofia (Inercia) de quem ouve. Assim o “Não ajunteis tesouros na terra”, onde a traça e a ferrugem tudo consomem “, fora transferido para o Céu dos Espíritas, “Nosso Lar”.

  4. O espiritismo a brasileira, quero acreditar que por descuido, se deixou impregnar por ideias religiosas. Muitas destas ideias são frutos dos romances que se espalharam, de forma inadvertida, como se fossem parte da doutrina espírita, principalmente as obras de Chico Xavier, que chegaram a ser incorporadas como obras complementares do espiritismo.

    Não sou eu quem irá criminalizar estas obras, entretanto, há muito tempo atrás, o movimento espírita deveria ter tomado o cuidado em advertir, de forma clara, que os romances espíritas precisariam ser encarados como obras de ficção e não como guias do espiritismo. Hoje, quando alguém me pergunta o que eu penso dos romances espíritas, eu digo que devem ser lidos como uma espécie de obra de entretenimento, como se leem as obras de Harry Poter ou o Senhor dos Anéis, por exemplo, ou ainda as obras de Agatha Christie. Não mais do que um meio de dar prazer a alma. Aquele que deseja ler para estudar espiritismo, deveria estudar as obras de Kardec.

    Aquele que deseja transformar esta ou aquela obra em uma das obras complementares do espiritismo deveria submetê-la a questionamentos rigorosos, inclusive, questionando os autores espirituais diante de dúvidas, inconsistências ou divergências com as obras que fundamentam o espiritismo.

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