Maria Cristina Rivé e Marcelo Henrique
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Desafiando de vez a noção
Na qual se crê que o inferno é aqui
Existirá
E toda raça então experimentará
Para todo mal, a cura
(“A Cura”, Lulu Santos, 1988)
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É interessante a frase “a cada um segundo suas obras”. A Filosofia Espírita nos apresenta a uma maneira totalmente diferente de entendimento, na forma de estudos metafísicos desde a sua concepção (1857). Nada existe de mágico, nada irracional. O Espiritismo nos descortina um mundo distinto daquele nos apresentado através dos tempos, pelas religiões salvacionistas, que prescrevem limbos, purgatórios, céus e infernos. A ideia de penas ou gozos futuros, estados de infelicidade permanente ou suplícios sem fim, como sentenças que Deus (ou seus “ministros”) aplicariam segundo regras imperfeitas e duvidosas – porque inventadas pelos homens, na qualidade de “intérpretes”, sem qualquer contestação, porque foram outros homens que os elegeram missionários. Até hoje!
Um Deus, portanto, revestido das mesmas características e imperfeições humanas. Um Deus parcial, que é considerado, dependendo a religião ou seita, como o “único”, o “verdadeiro”, o “real”. Motivador de dissensões no passado, guerras santas e fomentadora de uma nova guerra, na “terra santa” (não sabemos em que ou por que seria “santa”), onde ninguém se entende e se debate por crenças e a sua visão particular de Deus.
Quando da inserção das ideias espíritas na sociedade planetária, se a existência de algo além da matéria tangível, seria uma quimera e se a comunicação entre vivos e mortos e demais fenômenos “espirituais” eram “mistérios” e destinado aos “ascensionados”, com permissões especiais, ou por delegação divina, Kardec, ao idealizar e edificar a Doutrina Espírita, nos apresenta uma realidade natural, e não sobrenatural. Ele se convenceu da nova realidade não por dogmas, nem imposições de autoridades religiosas ou preceitos de fé. Desde as batidas e as danças das mesas, ou o soerguimento de objetos do chão, flutuando no ar, compreendeu por detrás do efeito uma causa igualmente inteligente.
E as perguntas iniciais, foram: Quem são vocês? E o que têm a nos dizer?
As respostas convergiram para uma mesma direção: – Somos iguais a vocês, só que desencarnados. Somos o que vocês já foram e serão novamente, em tantas idas e vindas. Para quem tinha sido educado e condicionado à ideia da ressurreição, do juízo final, da salvação pela fé, a informação acerca da palingênse – o “nascer de novo” de Yeshua a Nicodemo – foi como uma revolução. Para usar outra simbologia cristã, foi uma trave retirada dos olhos.
Foi o estopim para um universo de descobertas. A cada reunião, Kardec aperfeiçoava os questionamentos, pois era imensa a sede de conhecimento. E, como a difusão da existência da sistematização das ideias alcançou outras cidades francesas e europeias, muitos se sentiram encorajados de, por carta, enviarem comunicações mediúnicas para compor o grande acervo kardequiano.
Qual, então, o verdadeiro da “Revelação” Espírita? Ao mesmo tempo divino e humano, escreveu Kardec, no capítulo I, de sua última Obra, justamente a mais madura de todas, “A Gênese”, covardemente vilipendiada por aqueles que deveriam ser os seus primeiros guardiões [1]. Divino, porque, segundo as Inteligências Invisíveis, teria provindo de Deus – como, aliás, todas as coisas; humano, porque as criaturas encarnadas na segunda metade do Século XIX já possuíam maturidade suficiente para analisar racionalmente o que estavam recebendo via mediunidade. Mas Kardec, efetivamente, foi além. Criou um método de estudo comparativo de respostas, para validação daquelas que convergiam entre si, concordemente, e com os princípios estabelecidos pelo conjunto das informações, que viraram as suas obras fundamentais.
Em “O livro dos Espíritos”, já na Introdução, item VI, Kardec aborda o mundo espiritual como algo distinto do mundo material, em que, neste, as necessidades são materiais e, naquele, não são nem poderiam ser. Ou seja, as sensações e emoções de natureza corporal não mais existem; portanto fome, frio, sede, dor, entre outros. Mas os sentimentos que o ser espiritual possui, expressos na Terra, continuam além da morte.
E, assim, o ser vai crescendo em espiritualidade e, ao se esforçar, progride, se educando através dos tempos, em milênios sucessivos. Se a encarnação é considerada como um destacado processo educativo e, neste caso, a Terra é um educandário. Por isso, não é razoável nem verossímil crer-se em espaços punitivos no “além”, onde a dor possa sobrepujar o aprendizado. Percebamos como a pedagogia aborda o aprender: é através da amorosidade, do envolvimento do educando em suas diversas tentativas, onde, na maioria delas, há erros, frustrações, mas, sobretudo existe a ânsia de alcançar aquilo que, mesmo inconscientemente, se quer, ou seja, a conquista do conhecimento, do correto agir, do embelezamento do caminho, no qual os passos são cada vez maiores e plenos, porque se busca ser melhor.
Se, na própria vida material, a ideia de aprendizado pelo sofrimento já não seduz, exceto aqueles que acreditam que é por esse mecanismo que se evolui – como nas religiões dogmáticas e na religião espírita, também – o mesmo se dá, em maior autenticidade e realidade no “outro lado da vida”, isto é na condição de desencarnado, no estado de errante, na vida verdadeira.
Ademais, os Espíritos que com Kardec desenvolveram a Doutrina dos Espíritos, informaram que fora da matéria não haveriam lugares circunscritos. Então, por que razão alguns Espíritos teriam relatado acerca desses lugares sombrios? Teriam, enquanto desencarnados, introjetado essas ideias em seus íntimos, e materializado esses lugares por contos e histórias contadas? Ou estariam em ilusões individuais ou até coletivas, sugestionados por outrem? Sabemos que o Espírito pode moldar o Fluido Universal no qual está imerso e construir algo que esteja em seu íntimo, mas não há necessidade disto. É preciso abrir as portas ao entendimento dos “dois lados” da vida e o motivo da existência espiritual, seja na carne ou fora dela. Quando desencarnados, estamos diante de experiências de aprendizado, no balanço da última encarnação e na projeção da próxima. É espaço-tempo de despertamento, de solidariedade, de cooperação e de busca da perfeição relativa. E, não raro, as vivências que “juram” estar vivendo em “mundos paralelos”, “fluídicos”, se tratam, em verdade, dos mesmos cenários físicos onde estiveram em vida, revisitando residências, locais de estudo ou trabalho, de lazer e convivência coletiva, porque a vida continua…
Prosseguindo, aqui ou lá, acreditando em ilusões, plasmando lugares e realidades semimateriais, que se esvaem como espumas ao vento ou castelos de areia, muitos seguem sem acordar e, portanto, materializam os versos da canção de Lulu Santos, que abriram nosso ensaio.
Hoje, acreditam em umbrais, vales e colônias, do mesmo modo em que, tempos atrás, esperavam o inferno, o purgatório ou o céu. Isto prossegue até o momento em que a luz começa a iluminar, porque o ser abriu seus olhos e entendeu que a vida é muito mais do que ele enxergava, até então.
Notas dos Autores:
[1] O ECK vem se posicionando, desde 2017, contra a adulteração de obras espíritas. No caso das duas derradeiras obras de Kardec, “O Céu e o Inferno” e “A Gênese”, com artigos e documentos verdadeiros, como cartas e obras publicadas. Para acompanhar as publicações já realizadas, acesse o nosso Portal (https://www.comkardec.net.br/edicoes_harmonia/). Em breve, um Dossiê estará disponível.
Imagem de Nikos Apelaths por Pixabay
É interessante o paralelo que traçei enquanto lia este belo texto. Permita-me discorrer sobre o fato que me levou à reflexão:
Certa vez, observava duas encantadoras garotinhas, com idades em torno de 5 e 6 anos, brincando despreocupadas. De repente, uma das fofuras, possivelmente a mais velha, fez à amiguinha a seguinte pergunta:
Você sabe onde fica o céu?
A outra respondeu sem hesitar:
Sim, fica dentro da minha casa!
Não pode ser!” retrucou a primeira, e prosseguiu: “Pois meus pais vivem brigando!
Deve ser lá em cima, bem distante.
A moral da história é profunda. O céu e o inferno estão onde nos colocamos. E eis que surge a pergunta: Mas também esta onde colocamos os outros.
Parabéns pelo texto.