Denis Denisard
As obras de Kardec, que são em número de trinta e duas, configuram os alicerces da Filosofia Espírita. Elas formam todo um conjunto, também chamado de Doutrina dos Espíritos, a partir de princípios fundamentais. A desnaturação ou adulteração – ainda que parcial – de qualquer uma delas, seja pela introdução de ideias esdrúxulas, seja pela retirada de informações que foram catalogadas ou redigidas por Kardec, que as considerou essenciais para a delimitação das ideias espíritas, é atitude criminosa e que dificulta a compreensão exata do Espiritismo e de sua proposta para a Humanidade.
Naquele longínquo ano de 1857, em um dezoito de abril, o professor francês Denisard Hypollite Leon Rivail trazia a lume os primeiros exemplares impressos do seu “O livro dos Espíritos”, adotando o pseudônimo de Allan Kardec. A pedra fundamental do Espiritualismo Contemporâneo, superando o Moderno Espiritualismo que já existia há alguns anos, com a ocorrência de fenômenos mediúnicos e a perseguição da Igreja Romana às bruxas e aos bruxos, condenando-os à Inquisição, estava lançada.
O trabalho foi por ele conceituado como “Filosofia Espiritualista, de bases científicas e consequências morais”. A Ciência, a partir da observação e da catalogação dos fatos (mediúnicos, espirituais) gerou a compreensão e a estruturação (codificação) de sua Filosofia, apresentando e reconhecendo causas e efeitos, apropriando-se de temas que eram comuns às religiões e a algumas filosofias no curso da História, mas com um elemento diferenciatório fundamental: o afastamento do sobrenatural, dogmático, místico e mítico.
Todo o trabalho de pesquisa – e, principalmente, a reunião dos resultados em livros filosófico-científicos termina em 6 de janeiro de 1868, com a publicação de “A Gênese”, ainda que, até a sua morte, em 31 de março de 1869 (atenção para a data), Kardec ainda publicasse os exemplares da “Revue Spirite” de todos os meses de 1868, os três primeiros de 1869, comercializando-os, e tivesse deixado pronta para impressão, na tipografia oficial dos livros e revistas espíritas, o exemplar de abril da “Revue”.
Como homem de Ciência, Rivail (antes de se tornar Kardec) era profundamente cético em relação às coisas que excediam o quadrante da materialidade. No entanto, não afastava nada do exame lógico-racional e, por isso, acompanhando o que ocorria nos principais salões da Europa do Século XIX, com o “espetáculo” das mesas girantes, dançantes e falantes (escreventes, a partir de um código de comunicação idealizado pelos homens), concebeu toda uma metodologia científica própria, de observação, para entender, configurar e explicar os fatos e, quando se deu por convencido da realidade “transcendente”, procurou validar os ensinos dos Espíritos.
O método de fazer questionamentos às “Inteligências Invisíveis” (que respondiam por meio de seres humanos, mulheres e homens), levou-o a cunhar os conceitos de Mediunidade e Médium. No curso de seus trabalhos de pesquisa e questionamento, foi recebendo informações das mais diversas e, comparando as respostas, não somente delas entre si, mas com informações anteriores e com elementos fundamentais – que ele chamou de Princípios Fundamentais, pôde afastar o joio do trigo. Isto porque – e a prática e a experiência, assim como os resultados das atividades (páginas psicografadas, manuscritas) isto comprovaram – a natureza dos Espíritos que compareciam às sessões era praticamente a mesma daqueles que se encontravam naqueles recintos, como a dos demais indivíduos do seu tempo, salvo algumas exceções, que demonstravam, em razão da erudição, da linguagem culta, dos conhecimentos e das informações lógico-racionais, serem SUPERIORES ao padrão humano daquela época e das anteriores.
Conheceu, assim, os distintos níveis de progresso dos Espíritos, compatibilizando-os com os de distintas mulheres e homens de todos os tempos, dos mais aos menos elevados, estabelecendo, de modo exemplificativo – mas não definitivo nem exaustivo – um padrão de classificação dos níveis (ou graus) de progresso, compondo, assim, a Escala Espírita (itens 100 e seguintes de “O livro dos Espíritos”).
Sua pesquisa – embora com as limitações da existência física e dos elementos contextuais da Europa do Século XIX, em um mundo de expiações e provas – jamais comportou rechaços, precedentes, controvérsias ou dúvidas, em relação à metodologia utilizada. Tanto é que ninguém se atreveu, até hoje, a repetir – com o mesmo êxito e performance – suas experiências originárias, para continuar dialogando com os desencarnados. Todavia, nem mesmo Kardec – ou os Espíritos Superiores que colaboraram com a “obra completa” que ele apresentou, entre 18 de abril de 1857 e 31 de março de 1869 (anote bem esta última data) afirmaram ou objetivaram a permanência, a definitude, a perfeição, a completude e a irrevogabilidade dos conceitos. Muito pelo contrário, Rivail-Kardec definiu o Espiritismo como uma filosofia científica progressiva e progressista. Progressiva, porque deveria acompanhar as realizações, pesquisas, descobertas, teses e constatações das ciências humanas. Progressista, porque se associaria a qualquer ação individual e coletiva (social) visando o progresso da Humanidade – em especial a própria transformação individual e planetária, superando o estágio vigente e alcançando os demais níveis de existência espiritual planetária.
Mas o que não se esperava, logo após a sua morte – vamos repetir a data, 31 de março de 1869 – algumas controvérsias já existentes, dentro mesmo do chamado nascente movimento espírita (francês), sobre diferenças interpretativas em relação a pontos apresentados nas “obras kardecianas”
Pois uma série de pesquisas e investigações (documentais, históricas, bibliográficas e de arquivo em instituições oficiais francesas) “in loco”, realizadas, no início da década passada, em Paris, pela pesquisadora Simoni Privato Goidanich em Paris, demonstrando a comprovação de uma série de temores e de denúncias feitas no curso da História, sobre modificações – as quais chamamos de adulterações, porque desnaturam criminosamente – em duas das principais obras de Kardec, justamente “A Gênese” e “O Céu e o Inferno”.
Não se tem, até o momento, a comprovação acerca de um elemento fundamental à “teoria do crime” e ao “direito penal ou criminal”, que seria a AUTORIA. Ou seja, não se tem a demonstração fática e irrefutável de qual (ou quais) pessoa(s) se valeram do benefício de estarem na administração do “legado de Kardec”, isto é, as obras, seus originais e a administração da instituição criada por Kardec para gerir as questões institucionais espíritas, para realizar interpolações em suas duas obras finalísticas, já mencionadas.
Sobre a questão, podemos resgatar o que apresentou Evelyn Freire (em sua obra “Doutrina Espírita Sem Segredos” (Letra Espírita, 2020, ebook, Campos dos Goytacazes RJ, p. 83):
“[…] A Gênese foi adulterada, inclusive com a exclusão de conceitos doutrinários firmados por Allan Kardec. Esses conceitos ficaram desconhecidos por 150 anos. Em vida, Kardec publicou quatro edições idênticas à primeira, no decurso do ano de 1868. Entretanto, desencarnou em março do ano seguinte e, em 1872, comandando a continuidade das obras de Allan Kardec, Pierre Gaetan Leymarie, dissidente inconformado com os conceitos fundamentais apresentados em “A Gênese”, acabou realizando exclusões ao texto original e publicando uma quinta edição revisada, corrigida e aumentada que não correspondia à original”.
Mas, mesmo que, passados mais de 160 (cento e sessenta anos) não se consiga – até o momento – identificar os autores de tamanha agressão ao direito intelectual e de autoria e à própria estrutura do Espiritismo, o mais relevante é entender a(s) causa(s) motivadora(s) para realizar modificações no conteúdo dos dois livros citados, inclusive porque o “espírito” da intenção é o mesmo: retirar os elementos de caracterização da AUTONOMIA do Espírito, enquanto ser imortal e inteligente, criado por Deus, substituindo-a pela HETERONOMIA.
O que se vê no conteúdo das obras ADULTERADAS é uma “guinada” sem qualquer fundamento lógico-racional, no pensamento do autor – admitindo-se espuriamente que fosse Kardec quem tivesse realizado as mudanças gráfico-literárias, comprometendo todo o edifício construído, por meio de todas as suas publicações, e a maturação de conceitos que encontra, em “O Céu e o Inferno” e “A Gênese” o seu ponto culminante. Por outro lado, caso se trate de uma alteração póstuma – e realizada por outra(s) mão(s) – não se poderia consignar nas publicações o nome de Kardec como sendo o autor destas “novas edições”, já que outros haviam inserido partes ou itens e retirado outros, quando deveria(m) aquele(s) que assim agiram estarem identificados na impressão. Por fim, como ocorre no direito autoral e na indústria editorial, há herdeiros que autorizam por escrito a revisão de pontos da obra de algum autor morto e isto fica consignado em notas específicas na nova publicação (como é o caso, citando apenas um exemplo, das obras de um autor brasileiro, no ramo do Direito Administrativo, Hely Lopes Meirelles, cuja família permitiu a “atualização” de algumas informações nas obras que ele havia escrito e publicado em vida, para mantê-la de acordo com novas leis e a nova Constituição de 1988, no Brasil).
Portanto, o conteúdo de uma obra – no caso, duas, “O Céu e o Inferno” (OCEOI) e “A Gênese” (AG) –, deve permanecer fiel ao conteúdo das edições (uma tiragem para três edições de OCEOI, cujo depósito legal ocorreu em 1865 e em todas consta a menção a este ano e quatro edições de AG, sendo três em 1868 e uma em fevereiro de 1869), sem permitir qualquer outra versão ou apresentação impressa.
Sobre elementos históricos, documentais e de registro, o pesquisador e escritor Paulo Henrique de Figueiredo, assim se manifesta em uma entrevista (Folha Espírita, Adulteração em o céu e o inferno de Kardec. Disponível em <https://www.folhaespirita.com.br/jornal/pesquisa-indica-adulteracao-em-o-ceu-e-o-inferno-de-kardec/>. Acesso: 11/01/2021):
“Desde julho de 2019, vários grupos de pesquisa tiveram acesso aos documentos da Biblioteca Nacional da França e dos Arquivos Nacionais quanto às edições da obra “O Céu e o Inferno”. Na pesquisa efetuada pelo coautor de minha obra, Lucas Sampaio, nos grandes e empoeirados livros de mais de um século, nos Arquivos de Paris, ele encontrou o depósito legal n. 5.819, da quarta edição de “O Céu e o Inferno”, registrado em 19/7/1869, à página 117 do documento F/18(III)/124. Sendo após a morte de Rivail, trata-se de adulteração. Na França, como ocorreu com “A Gênese”, a União Francesa, responsável pela publicação da obra, já voltou à edição original de Kardec, assim como na Argentina. No Brasil, estamos preparando a edição em português. O mundo inteiro está restaurando a verdadeira voz de Kardec. São alterações seríssimas. O adulterador tinha em vista implantar as ideias de castigo divino, carma, sofrimento como pena divina, queda e outros dogmas, implantando textos jamais escritos por Kardec em “O Céu e o Inferno”. Também retiraram ideias fundamentais quanto à moral autônoma, responsabilidade moral, a liberdade como lei divina. Será um resgate trabalhoso, exigindo estudo e dedicação dos espíritas. Mas será a restauração da verdade”.
Importa salientar que, no seio de movimentos, organizações sociais e instituições de caráter filosófico e religioso, principalmente, a situação de disputa pelo poder e imposição de posições, crenças ou ideias é marcante, na história da Humanidade. O Espiritismo, sobretudo aquele que “sobreviveu” à morte de Kardec também experimentou esses lamentáveis acontecimentos e a tentativa de “mudança de rumos”, da parte de indivíduos inescrupulosos, vaidosos, orgulhosos e prepotentes, no afã de fazer suas ideias prosperarem, mesmo a despeito das de outrem, inclusive as que constituem os fundamentos de uma proposta – no caso a da Doutrina dos Espíritos.
Figueiredo, na entrevista já citada, prossegue:
“Foram muitos trechos significativos retirados de “O Céu e o Inferno” que demonstram as conclusões de Kardec quanto à doutrina moral espírita. Neles, ele explica que o Espiritismo supera os dogmas presentes em sistemas criados pelos homens, pelos conceitos baseados nas leis naturais deduzidas das milhares de comunicações dos Espíritos, em diversos estágios evolutivos. Isso faz da metafísica e da moral uma ciência, pelo método de pesquisa espírita. Ficamos privados desses ensinamentos em virtude da adulteração. Logo no segundo item das Leis da Justiça Divina, capítulo 8, da edição original (que se tornou o 7, na versão adulterada), Kardec havia escrito: “Sendo todos os Espíritos perfectíveis, em virtude da lei do progresso, trazem em si os elementos de sua felicidade ou de sua infelicidade futura e os meios de adquirir uma e de evitar a outra trabalhando em seu próprio adiantamento”. Essa é a mais clara e profunda definição da autonomia moral espírita. Desse modo, a felicidade não é uma concessão ou graça divina, mas uma conquista do próprio ser. Também a infelicidade não é um castigo, mas uma condição criada quando o Espírito desenvolve uma imperfeição, e termina quando ele próprio a desfaz. As vicissitudes do mundo material não são jamais castigos, mas, sim, oportunidades para o desenvolvimento do Espírito. Este mundo, portanto, não é uma prisão, e sim uma escola de aplicação”.
O conteúdo deste texto não deve ser identificado com qualquer tentativa de “punição” dos autores que realizaram as adulterações nas obras kardecianas, nem ser associado a qualquer linchamento ético de tais personagens (caso sejam conhecidos, um dia). Nem configura, de outra sorte, a eleição de algum tribunal atemporal para julgar os atos cometidos, mas pode servir de alerta àqueles que, desrespeitando os fundamentos do Direito (e, mais especificamente o Direito de Propriedade e o Direito Intelectual e Autoral), continuem patrocinando a ideia de que são “legítimas” as edições póstumas e adulteradas das obras em comento. Doo contrário, devem servir de alerta contra a idolatria de pessoas, instituições ou movimentos, porque eles, no passado, assim como no presente e, ainda, em parte de nosso futuro, enquanto não estivermos em planos mais adiantados, são humanos falíveis e manifestam suas limitações, defeitos e predileções.
A produção rivailiana ou kardeciana (já que ele adotou, para a atividade espírita, um pseudônimo), se encerrou em 31 de março de 1869, daí termos frisado a data, inicialmente. Tudo – repetimos, TUDO – o que for publicado após esta data extravasa ao componente existencial do homem que assumiu a missão de trazer a Filosofia Espírita para o nosso cotidiano e para o porvir da Humanidade. A isto devemos ser fiéis e respeitosos, sempre!
Que este artigo e os demais que buscam lançar luzes verdadeiras sobre os fatos que envolveram – e ainda envolvem – as edições adulteradas de “O Céu e o Inferno” e “A Gênese” nos auxiliem para entender as conjunturas e promover um Espiritismo – enquanto movimento – esclarecedor, inclusivo, real e fiel ao pensamento de Allan Kardec. Somente assim será Espiritismo!
Imagem-de-Ngoc-Tang-por-Pixabay
Poderia elencar, por favor, as 32 obras deixadas por Allan Kardec? Conheço 23, porque conto cada ano da Revista Espírita como uma obra – só aí são 12, não é? demais são: O Livro dos Espíritos, O livro dos Médiuns, O Evangelho segundo o Espiritismo, O Céu e o Inferno, A Gênese, O que é o Espiritismo, O Espiritismo rm sua mais simples expressão, Viagem Espírita em 1862, Instruções práticas sobre as manifestações Espíritas, Resumo das leis dos Fenômenos Espíritas, Catálogo racional para se fundar uma biblioteca espírita. Por favor, pode me informar o nome das que me faltam? Desde já agradeço.
Otaviano, sim são 32 obras. Se você for amigo do Marcelo Henrique, Coordenador-Geral do Projeto CK e do grupo Espiritismo COM Kardec (ECK), peça a ele o envio da ARTE onde constam, ano a ano, todas as obras. Grato por seu comentário e interesse. Portal CK.