Célia Aldegalega
O Espiritismo se apresentou como alternativa à crença religiosa, esgrimindo sabiamente com as ideias e o desenvolvimento da época em que surgiu, e é pertinente perguntar se a insistência numa orientação religiosa se adapta aos tempos atuais, quer no que diz respeito às questões específicas da atual idiossincrasia, quer na correspondência aos perfis, às tendências, e às necessidades das pessoas.
O título deste texto reflexivo é plágio parcial de um discurso do filósofo, matemático e escritor britânico, laureado com um Nobel em 1950, Bertrand Russell, “Por que não sou cristão: um exame da ideia divina e do cristianismo” [1]. Incorro, portanto, na apropriação de uma frase de autoria alheia, e na temeridade de imitar alguém cujo contributo para o mundo é imensuravelmente mais significativo do que o meu. E sigo pelo mesmo (mau?) caminho, aconselhando a leitura do texto de Russell, livre-pensador, a todos os/as espíritas interessado/as em alargar as suas referências. Constitui um excelente exercício dialético, se nos dispusermos a contra-argumentar “com Russell” os seus argumentos de ateu contra a existência de Deus.
No entanto, haverá diferença na forma como espíritas evangélico/as ou religioso/as, e livres-pensadores laicos se relacionam com esse texto. Desde logo, criando, ou não, anticorpos contra, por exemplo, a sua desconstrução da ideia da Causa Primária (assim mesmo designada no texto do filósofo), e percecionando que o Deus em que Russell não crê, é o teísta, ainda que o não refira.
Também se pode fazer apelo à tolerância para aparar ideias contrárias às que se têm, e com essa abertura mental, deixar-se surpreender pela proximidade de ideias vindas de um ateu, como esta:
“A ciência pode ensinar-nos, e penso que também os nossos corações podem fazê-lo, a não mais procurar apoios imaginários, a não mais inventar aliados no céu, mas a contar antes com os nossos próprios esforços aqui em baixo para tornar este mundo um lugar adequado para viver, em vez da espécie de lugar a que as igrejas, durante todos estes séculos, o converteram”.
Não conseguiria conter-me sem pedir a Russell, tendo essa oportunidade, se me faria a caridade de explicar em que contexto refere “o coração”, e, devolvendo-lhe o seu pragmatismo, se creria que um órgão cuja função é, simplificadamente, bombear sangue, estaria em condições de cumprir a tarefa que lhe atribuiu. É que o próprio Russell precisou de um referencial para situar um ponto concreto de onde dimane bondade e consciência. Russell não reparou que apelar ao coração como produtor ou repositório de consciência, é mais desconcertante do que admitir a existência do Espírito.
No que concerne ao papel das igrejas, estamos em sintonia. Desde muito cedo não encontrei correspondência em qualquer religião, tendo sido industriada na religião católica por “decreto”, numa altura em que o vínculo do Estado e da ICAR [a] em Portugal era indelével, e, juntamente com a escolaridade, se ministrava catequese. Embora por pouco tempo, ainda frequentei salas de aula com um crucifixo acima do quadro preto, ao centro, ladeado pelos retratos de Salazar e Américo Tomás (o Presidente da República). Deus, Pátria e Autoridade – o lema do regime, assim figurado e plasmado diante da visão de crianças de seis anos. Essa cumplicidade entre ICAR e Estado esteve na origem do desmantelamento do Movimento Espírita Português (MEP), com o pretexto de um incumprimento legal na constituição da Federação Espírita Portuguesa, assim declarada ilegal, e irradiada.
Ora, desde logo, para alguém que desde tenra idade resistiu à conversão religiosa, seria improvável aderir a uma filosofia espiritualista que devolvesse no todo ou em parte aspetos relacionáveis com religião. A retoma [b] do MEP em 1975, após a Revolução de Abril, foi apoiada pelo MEB na vertente evangélica ou religiosa da FEB, dando continuidade à comunicação vetusta dos movimentos de ambos os países, que inicialmente teve duas vias: espíritas portugueses também se deslocavam ao Brasil para palestras e intercâmbios.
Confesso que expressões como “o Pai” e tudo o que constitua discurso “de igreja” me incomoda, silenciosamente, mas já agitei uma assembleia ao declarar-me não cristã, e entre a minha incompetência para melhor me exprimir e o apego dos ouvintes às suas crenças, não logrei transmitir o que pretendia dizer.
Tendo encontrado tardiamente correspondência no Espiritismo, a inquietude disponibilizou-me a descobrir melhor correspondência na sua corrente laica, e, juntamente, tomar conhecimento de insignes espíritas da América do Sul e de Espanha, país com o qual também o MEP teve intercâmbios desde tempos remotos.
É o caso de David Grossvater, judeu polaco que emigrou para o Brasil adolescente, depois de perder a família num campo de concentração nazi, e se instalou na Venezuela em 1930, já conhecedor do Espiritismo. Viria a ser o fundador do CIMA, sigla que, inicialmente, representava a designação Centro de Investigaciones Metapsiquicas y Afines, mas, desde a direção de Jon Aizpúrua, foi renomeado Centro de Cultura Espírita (CIMA). Em 1966 David Grossvater editou o livro “Espiritismo Laico”, fixando a caracterização dessa orientação espírita. Tal como nas obras de Allan Kardec, há no livro de Grossvater aspetos datados, mas globalmente, continua a ser um documento fundacional.
No prólogo da terceira edição [2], Grossvater enuncia as características do Espiritismo Laico [3]:
- Preexistência e Sobrevivência do Espírito em todos os seres vivos em diferentes etapas evolutivas.
- Evolução integral de tudo o que existe.
- A Reencarnação como lei natural, geral e universal.
- Comunicação entre espíritos desencarnados, ou em emancipação, e os encarnados, através de múltiplos médiuns psíquicos.
- A mediunidade como vocação de serviço em trabalho idealista, e não como especulação mercantilista.
- Multiplicidade da vida em todo o Universo.
- Solidariedade e Fraternidade universal.
- O Espiritismo como ideologia a-religiosa e antidogmática, sem se limitar a ensinamentos de escritores determinados, mas antes em perene desenvolvimento e avanço com o que cada autor transmita, pondo de parte falhas e erros que tenham sustentado.
- O Espiritismo como Filosofia Laica, com projeções éticas, humanísticas e sociais, depurado de influências nocivas do criacionismo religioso, do orientalismo, teosofia, maçonaria, e outras instituições pseudo religiosas; e dotado de uma vibrante mensagem transformadora e revolucionária que propugne pela Justiça Social.
- O Espiritismo como Ciência Integral e evolutiva, de observação e experimentação.
Qualquer espírita identificará nestes 10 pontos fundamentos do Espiritismo conforme codificado por Kardec. Nalguns casos, trata-se de uma reescrita. O ponto um será aceitável por todas as orientações espiritistas em reconhecimento do princípio espiritual dos animais, e embora a extensão a todos os seres vivos possa remeter para um enunciado panteísta, é concordante com Geley e com Gabriel Delanne. Apenas os pontos oito e nove apresentam aspetos específicos claramente enunciados. O ponto nove é explícito quanto à influência de crenças e de outras correntes espiritualistas, embora, pessoalmente, encontre noutras filosofias e religiões pontos comuns, bem como materiais interessantes. Talvez o ponto oito mereça maior desenvolvimento, já que compreende a não exclusividade a certos autores, e a exclusão de outros, como também a aplicação do sentido crítico a qualquer escrito, não hesitando em referir que qualquer pode ter falhas e errar. Os/as espíritas de orientação laica são acentuadamente detratores/as da mitificação de quaisquer figuras, por mais importantes e destacadas que sejam, moral e intelectualmente. O que vai de médiuns famosos, às próprias obras de Allan Kardec, abordadas com pragmatismo e analiticamente.
“Todo o devocionismo extremado aos mestres sufoca o estudante até à cegueira mental, esteriliza o autor e castra o pensamento” [4].
O/A espírita laico/a não é aficionado/a de textos psicografados, e tem reservas quanto a algumas obras cultuadas pela orientação evangélica, ou religiosa, como Nosso Lar. Um/a espírita laico/a não absorve um princípio, ou uma qualquer declaração por vir de uma figura destacada e “certificada”, encarnada ou desencarnada, não replica conhecimento que não entenda, nem se lhe afigure credível. Tal seria remetível a fé, e não a raciocínio lógico, ou racionalidade. Perigosamente próximo da assimilação de dogmas. O/A Espírita Laico/a acalenta particularmente a máxima de Erasto que refere ser preferível rejeitar 10 verdades do que deixar passar uma única mentira. Um/a espírita laico/a, por mais convicto/a, está pronto/a a aceitar contestação, e a admitir a possibilidade de estar equivocado/a.
“Kardec de hoje, em espírito ou em nova matéria encarnado, não é o Kardec do século passado. Agora será muito mais avançado na sua pedagogia e mais visionário e antecipador, vislumbrando os séculos vindouros com uma didática alheia a personagens evangélicas. O mesmo em relação a Denis, Trincado [5] e a todos os Mestres” [6].
No exercício desse princípio de pragmatismo que amiúde escandaliza a orientação evangélica ou religiosa quando interpela obras consagradas de autores encarnados ou desencarnados, opino que o laicismo de Allan Kardec não é um dado adquirido, e que, possivelmente, o debate entre orientações é sustentado por algumas ambiguidades e até contraditórios, expressos em toda a extensa e exaustiva obra, a fornecerem argumentos quer a laico/as, quer a religioso/as. Vide, a exemplo, a definição de homem de bem como cristão, e a declaração citada por Grossvater: “Não há revelação que se sobreponha à autoridade dos factos” [7], de contornos laicos.
Há, indubitavelmente, uma negociação (no sentido que se lhe dá em Sociologia) de Kardec com os poderes religiosos instituídos, e os próprios Espíritos que forneceram as respostas se exprimem sistematicamente com palavras, expressões e conceitos radicados na cultura judaico-cristã de orientação católica, maioritariamente. Recorde-se, no entanto, que essa linguagem correspondia à das sociedades ocidentais da época, e era grande o empenho de Kardec em comunicar com elas de modo eficaz.
Cabe recordar que o Espiritismo se apresentou como alternativa à crença religiosa, esgrimindo sabiamente com as ideias e o desenvolvimento da época em que surgiu, e é pertinente perguntar se a insistência numa orientação religiosa se adapta aos tempos atuais, quer no que diz respeito às questões específicas da atual idiossincrasia, quer na correspondência aos perfis, às tendências, e às necessidades das pessoas. A humanidade tende a afastar-se da religião, o que não é tão mau como religiões e orientações religiosas e espiritualistas tantas vezes concluem, atribuindo ao materialismo o desinteresse das massas, pois também pode ser expressão de evolução, no sentido da responsabilização e da autonomia, por oposição à heteronomia religiosa. Retomando o texto de Bertrand Russell [1], eis um excerto significativo:
“A religião baseia-se, penso eu, principalmente e antes de tudo, no medo. É, em parte, o terror do desconhecido e, em parte, como já o disse, o desejo de sentir que se tem uma espécie de irmão mais velho que se porá de nosso lado em todas as nossas dificuldades e disputas. O medo é a base de toda essa questão: o medo do mistério, o medo da derrota, o medo da morte. O medo é a fonte da crueldade e, por conseguinte, não é de estranhar que a crueldade e a religião tenham andado de mãos dadas. Isso porque o medo é a base dessas duas coisas”.
E segue, referindo a Ciência como fonte de esclarecimento e conhecimento, e como meio de superar o medo, com o qual a humanidade tem vivido por tantas gerações, produzindo um enunciado perfeitamente consonante com o Espiritismo.
Grossvater já intuía a importância do pensamento e das ações na nossa identidade psíquica, e entre as práticas, ou mesmo praxis, mais penosas da orientação espírita religiosa, encontra-se a relação com o sofrimento, a prova e a expiação, e a sistemática autorreferência como espírito imperfeito, o que, além do mais, é redundância.
Somos o que pensamos.
“O destino de cada um não é dirigido por ninguém, é o seu próprio estado biológico e psicossomático individual. Cada um é forjado pelas próprias ações. Tampouco se adquirem conhecimentos por osmose ou por herança, mas antes pelo estudo formal. A vida é Retoma” [8].
O/A Espírita Laico/a se arrepia quando ouve declarar que o Espiritismo tem todas as respostas, porque se apercebe do contrassenso: teremos capacidade para formular todas as perguntas? O/A espírita laico/a está convicto/a de que “a Codificação é o começo e não o fim” [9]. E empenha-se na integração de desenvolvimentos da ciência, na adequação às realidades atuais, na busca das respostas às questões particulares da nossa idiossincrasia, de forma livre, sem receios. Busca integrar o conhecimento espírita na sua prática quotidiana, sendo agente de mudança, na medida do seu alcance.
“LAICISMO quer dizer nada de mistério, nada de círculo cabalístico, nem de secretismo, nem de palavras sagradas. Laico é sem interferência de normas dogmáticas, ritos, reverendos veneráveis, nem disciplinas claustrais ou hierárquicas de igreja alguma, ou coisa parecida; sem patronatos de partidos ou de personagens; sem rotinas e sem restrições ao pensamento, ou que o circunscreva a uma eterna Agenda de imobilidade, e haver liberdade de estudo entre a coletividade ou seus membros” [10].
Notas da Autora:
[1] Palestra datada de 1927, posteriormente incluída num livro com título homólogo, que reúne vários ensaios e textos. Usei a tradução digital de Diego Barreto Haddad.
[2] GROSSVATER, David. Espiritismo Laico. Caracas: 1974, Ed. CIMA, 1974. Digitalização de Pensamento Social Espírita (PENSE). 2011.
[3] Tradução da autora.
[4] _____. P. 28.
[5] “Intelectual e escritor espírita espanhol Joaquín Trincado Mateo (1866-1935), radicado em Buenos Aires, Argentina. De origem basca, nascido em Cintruén (província de Navarra), Trincado era eletricista e fundou, em 1911, a Escola Magnético-Espiritual da Comuna Universal – Escuela de Pedagogía Racional, Filosofia y Metafísica, um movimento eclético, que mistura ideais anarquistas e libertários com o zoroastrismo, esoterismo, cabala e Kardecismo. Posteriormente, esse movimento espiritualista transladou-se da Argentina para o México, onde possui grande número de adeptos” (explicação do Editor na Introdução da terceira edição). David Grossvater relacionou-se com o Trincadismo, mas refutou-o.
[6] GROSSVATER. P. 28.
[7] Idem.
[8] _____. P. 33.
[9] _____. P. 28.
[10] _____. P. 25.
Notas do ECK:
[a] ICAR é a sigla de Igreja Católica Apostólica Romana.
[b] Retoma significa recomeço.
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