Por Ladislau Dowbor | Tradução: Antonio Martins1
As crianças perderam as ruas e foram aprisionadas em telas. O trabalho tornou-se obrigação sem sentido. O laço entre as gerações se perdeu no apartamento exíguo. Mas busca-se, em todo o mundo, caminhos de reconexão. São flores no asfalto?
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Trabalhei anos em países africanos com ambiente social rico: bairros com crianças, avós, tios e tias, muito barulho e correria, zero privacidade, mas também muitas risadas. Era vida pulsando. E as ruas eram um lugar para socializar. Na minha infância em São Paulo, lembro que minha mãe ficava rouca de tanto gritar para nos chamar do meio da rua na hora do almoço. O mundo nos permitia explorar, e aprender a identificar o que valia a pena correr atrás — e do quê era melhor fugir.
Jonathan Haidt menciona, em The Anxious Generation: How the Great Rewiring of Childhood Is Causing an Epidemic of Mental Illness2, a fragilidade social de crianças superprotegidas, refugiando-se em seus smartphones, com pouca experiência de liberdade para explorar o mundo ou de interação social espontânea. Mas isso não é um problema apenas para as crianças. A vida social foi empobrecida — e profundamente transformada — para todos.
Nos estádios de futebol, vemos milhares de pessoas gritando e cantando, empurrando-se numa explosão de convivência, a felicidade de xingar a mãe do juiz. Na TV, onde as crianças assistem ao jogo e ouvem, ao fundo, a torcida cantando refrões agressivos ou obscenos, o comentarista os “traduz”, para preservar as inocências. Bem,a explosão no estádio é libertadora, mas dura só algumas horas a cada semana. Quando criança, eu não assistia a jogos – nós os jogávamos. E xingávamos de forma saudável. Será só nostalgia do passado? Há, de fato, uma perda de convívio, e a convivência virtual não é a mesma coisa. Uma grande transformação está na estrutura familiar. Ela varia conforme o país ou a comunidade, mas, no geral, esse pilar da organização social mudou.
Tomo o exemplo norte-americano, expresso na figura abaixo: entre 1960 e 2023, o que antes era o paradigma do American way of life — um casal com filhos (se possível, com TV, carro, quintal e churrasqueira) — passou de 44,2% dos lares para apenas 17,9%. Os políticos ainda insistem em tratar a família como “alicerce sagrado da sociedade”, e os pastores fazem o mesmo, mas seria bom eles olharem os dados com mais atenção. Na realidade, as pessoas que vivem sozinhas, que representavam 13,1% dos lares em 1960, agora somam 29%. É uma fratura profunda na estrutura social. Se adicionarmos casais sem filhos, chegamos a 58,4% dos lares estadunidenses compostos por adultos casados ou solteiros sem crianças, como destacado no gráfico. Há ainda parceiros não casados e pais/mães solo. O ponto crucial não é apenas a perda das ruas como espaço de convivência, a obsessão com smartphones, mas também o isolamento do lar.
Entra gráfico
A erosão da família tradicional impacta claramente a nova geração: crianças solitárias com pais trabalhando, sem espaço para vagar livremente ou para escolhas individuais e eternamente instruídas sobre o que fazer e como agir. Seja na escola, nas aulas extras especializadas ou com os primeiros terapeutas infantis, o horário das crianças está cada vez mais ocupado. No pouco tempo livre que resta, elas ficam coladas ao smartphone, em busca de tantos likes quanto possível — e ansiosas com críticas ou rejeições. E têm acesso a toda a pornografia que desejarem: o smartphone não é um bairro físico, com limites reais. Haidt explora em profundidade como isso criou a “Geração Ansiosa”. Para muitas crianças, já não há mais aquele tempo no colo do avô, fazendo perguntas curiosas sobre o passado.
Max Fisher mostra, em A Máquina do Caos3, como não há liberdade de navegação na internet – só algoritmos vorazes por atenção. Ao zapear canais de TV, quase todos me bombardeiam com o mesmo conteúdo: sexo, drogas, violência. É o que chama atenção – e o que Hollywood nos empurra goela abaixo. É a indústria da atenção, cujos custos estão embutidos nos preços que pagamos ao fazer compras.
Ao mesmo tempo, rompeu-se o elo colaborativo entre gerações. Nas famílias tradicionais, por milhares de anos, ter filhos significava que, quando os pais envelhecessem e não pudessem mais trabalhar, os filhos adultos cuidariam deles. Assim, garantia-se um equilíbrio entre a idade adulta produtiva e os dependentes (crianças e idosos) em uma cadeia de solidariedade intergeracional. Mas o que acontece quando a maioria dos adultos não tem filhos, como vimos acima?
Nos países nórdicos, políticas públicas garantem lares para idosos dignos e saúde gratuita para a população envelhecida. O que antes era responsabilidade das famílias, agora é assegurado em escala coletiva. Nos apartamentos exíguos da família nuclear, não ha espaço para os avós, mas ao menos há apoio público. Já em países como EUA, e sobretudo no Brasil, os idosos enfrentam apoio familiar declinante e políticas sociais precárias. Os asilos privados? Caríssimos e mal administrados – quando não criminosamente negligenciados. Sistemas que só visam lucro máximo não são opção de gestão adequada – pra dizer o mínimo. E a ansiedade acerca de nosso futuro quando idosos já é sentida quanto estamos na meia idade. Precisamos passar por isso?
Há outras tendências que aceleram a erosão dos laços sociais. O espaço de trabalho já foi um território essencial de convivência. Todos já vimos os tradicionais arrozais na Ásia, com fileiras de mulheres cantando enquanto cuidavam juntas das mudas. No ambiente industrial, grandes grupos de operários compartilhavam desafios comuns, organizavam-se em sindicatos, sentiam-se unidos por lutas similares e mantinham intenso contato humano. No cenário atual, dominado por tecnologia e algoritmos, o espírito de solidariedade da classe trabalhadora perdeu força — prevalece o cada um por si. É claro que ainda há exceções em certos ambientes, mas no geral a sensação de colaborar por algo útil, de construir um futuro não só para si, mas como parte de um projeto coletivo, enfraqueceu-se. A fragmentação social no trabalho, especialmente com tarefas isoladas em computadores, aprofunda-se. E há ainda o cenário tóxico de competição em muitas corporações que adotaram o sistema Jack Welch4 — onde colegas são pressionados a se sabotar por sobrevivência.
Um fator importante é que a organização urbana está muito mais centrada na fluidez do trânsito do que na criação de espaços de convívio. Já uma cidade como Toronto oferece muitos espaços públicos arborizados, com jogos de bocha para idosos e piscinas escolares abertas à comunidade. Em cidades italianas, vi pegadas pintadas nas calçadas e áreas protegidas para crianças caminharem com segurança, transmitindo a sensação de que a cidade também é delas — que estão em casa até nos espaços públicos. Em Lausanne, a prefeitura treinou estudantes para cuidar de idosos em seus bairros, com um pequeno salário e em seu tempo livre, em vez de depender de mais asilos. Isso fortalece a solidariedade local e cria amizades.
No Brasil, criamos uma rede de Pontos de Cultura – com incentivo público para jovens desenvolverem arte. Milhares surgiram, e a interação online estimulou a criatividade local em vez de depender das redes sociais globais passivas. Num experimento no bairro paulistano da Casa Verde (86 mil habitantes), criamos uma rede colaborativa local que fomenta interações entre a comunidade, pequenos negócios e atividades culturais. Os exemplos são muitos: as pessoas estão descobrindo que, em vez de brigar por “likes” nas redes globais, é possível construir redes locais que fortalecem o convívio. Organizações comunitárias têm um campo vasto para florescer.
Neste ambiente fragmentado, as realidades são extremamente diversas. De um lado, condomínios fechados – ilhas de luxo isoladas, com regras rígidas e um absurdo sentimento de pertencer a uma elite. Do outro, os bairros pobres, onde a desigualdade tornou-se causa fundamental de divisão econômica e cultural, gerando tensões e violência. Estudos sobre Rio de Janeiro e São Paulo, como os de Bruno Paes Manso em “A Fé e o Fuzil”, revelam como a ausência de um convívio social saudável criou um ambiente social destrutivo. Nesse cenário, milícias ilegais, polícia, facções do tráfico, igrejas neopentecostais e política populista se misturam, formando um tecido social opressor5.
Não se trata de saber se as tendências são boas ou ruins, mas de compreender a profundidade da mudança estrutural e aproveitar novas oportunidades. Todos estamos conectados na internet, e essa nova conectividade abre múltiplas possibilidades de colaboração criativa. Para as mulheres, em particular, as oportunidades cresceram muito além da maternidade, e a mudança na estrutura familiar vista acima está certamente ligada à tecnologia contraceptiva, mas também a uma mudança geral na estrutura social. A sociabilidade pode ser reconstruída de novas maneiras, por meio de políticas urbanas, redução da jornada de trabalho e expansão de atividades culturais, entre outros. Isso também significa reorientar a lógica geral de nossas economias – da busca insana de rentas, visando atingir o topo da pirâmide econômica para iniciativas colaborativas centradas em lares, comunidades, uso inteligente da conectividade online, além de uma vida cultural mais rica. Não se trata de crescimento do PIB, mas de qualidade de vida e bem-estar social.
Com o que produzimos hoje e as tecnologias que temos, não se trata de falta de recursos, mas de reorganização social e política. Repetir que the business of business is business, abstrair os interesses econômicos das consequências sociais e ambientais, ou a recusa machista ao Estado de bem-estar social, visto como um “Estado babá” tudo isso é pura estupidez6.
Ampliar o prazer de viver para todos – é disso que se trata.
NOTAS
1Publicado originalmente no site britânico Meer
2“A Geração Ansiosa: Como a Grande Reconexão da Infância Está Causando uma Epidemia de Doenças Mentais” (tradução livre do título original em inglês).
3Max Fisher – A Máquina do Caos – Como as redes sociais reprogramaram nossas mentes e nosso mundo – Ed. Todavia, 2024.
4David Gelles – The Man who Broke Capitalism: how Jack Welch gutted the heartland and crushed the soul of corporate America – and how to undo his legacy – Simon & Schuster, New York, 2022
5Bruno Paes Manso – A Fé e o Fuzil – Todavia, São Paulo, 2023 – Ver também A República das Milícias – 2022
6Ladislau Dowbor – Os desafios da revolução digital – Elefante, São Paulo, 2025.
Republicação do Outras Palavras:
Dowbor: Pra nos tirar da solidão – Outras Palavras
Ladislau Dowbor
Economista e professor titular de pós-graduação da PUC-SP. Foi consultor de diversas agências das Nações Unidas, governos e municípios, além de várias organizações do sistema“S”. Autor e co-autor de cerca de 45 livros, toda sua produção intelectual está disponível online no website www.dowbor.org.
Imagem de wal_172619 por Pixabay
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