Wilson Custódio Filho
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“Na dúvida, abstém-te, diz um dos vossos velhos provérbios. […] Mais vale rejeitar dez verdades do que admitir uma única mentira, uma única teoria falsa” (Erasto, em “O livro dos Médiuns”, de Allan Kardec, Parte Segunda, Capítulo XX, Item 230, “in fine”) [1].
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No livro “Sapiens: uma breve história da humanidade”, Yuval Harari [2] ressalta que, desde o instante em que os seres humanos aprenderam a imitar os animais, também se apropriaram da capacidade de mentir. Descemos das árvores, nos erguemos sobre os dois pés, tornamo-nos bípedes. E agora, eis-nos aqui, imersos no esplendor do tão proclamado progresso. Não que não devesse ser assim, afinal, tudo avança. E que bom que avança.
Admito que me inquieto. Fazer o quê? Como manda o figurino, tudo deve passar pelo crivo do bom espírita, mas o herege que há em mim não deixa. Ele abafa o sentimento doutrinário crístico salvadorenho. Tento evitar, mas o niilismo ecoa na consciência, levando-me a pensar que a mentira é divindade inata da complexa natureza humana.
Estranho, não? Mas a verdade é que a mentira, dentro do meio espírita, tem camuflado a verdade. O Homem de Bem de “O evangelho segundo o Espiritismo” (Capítulo XVII, Item 3) [3], realmente foi residir em “Nosso Lar” e morar entre “Os Mensageiros” [4]. Mas e nós, como ficamos? Como separar o joio do trigo, quando a mentira continua a trair a verdade? Parafraseando Milton Nascimento, em “Carta à República” [5]: “A esperança que a gente carrega é um sorvete em pleno sol”. Eu pergunto, então: O que fizeram com o Espiritismo?
Reflexão sobre a MENTIRA e a VERDADE no Espiritismo.
Retomando ao princípio com Harari, cujas ideias sobre a origem da mentira e a natureza humana me provocaram reflexões profundas, tem-se um papel indireto nas inquietações que surgem ao analisar o Espiritismo e a busca pela verdade.
De Jean-Baptiste Roustaing a Pierre-Gaëtan Leymarie, de Adolfo Bezerra de Menezes Cavalcanti ao Grupo Sayão, e, deles, aos Medalhões da Contemporaneidade, em que momento se perdeu o fio da meada?
Talvez o ato de IMITAR, como sugere Harari [2], tenha nos desviado, propositalmente, do crivo racional sugerido por Allan Kardec, que recomendou: “Desde que surja uma opinião nova, por pouco duvidosa que vos pareça, passai-a pelo crivo da razão e da lógica” (“O livro dos Médiuns, cap. XX, item 230) [1].
Esse afastamento tem nos levado, enquanto “meio espírita”, a adotar comportamentos e crenças sem a devida reflexão crítica. E sabemos: isso não é Espiritismo!
No contexto espírita, a mitomania pode ser vista como uma evidente forma de desvirtuar a doutrina, fabricando crenças e fatos que não têm base em uma verdade espiritual. Essa tendência é um dos maiores obstáculos ao progresso espiritual, pois impede o esclarecimento real e o desenvolvimento genuíno.
A Verdade nos Ensinamentos de Jesus e Kardec.
Jesus, não o Cristo divino, mas o homem que pregou nos montes, ensinou: “E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (João: 8;32) [6]. Num texto assinado pelo Espírito S. Luís (“O evangelho segundo o Espiritismo”, Cap. X, Item 21), está prevista a luta da verdade contra a mentira: “Se as imperfeições de uma pessoa só prejudicam a ela mesma, não há jamais utilidade em divulgá-las. Mas se elas podem prejudicar a outros, é necessário preferir o interesse do maior número ao de um só. Conforme as circunstâncias, desmascarar a hipocrisia e a mentira pode ser um dever, pois é melhor que um homem caia, do que muitos serem enganados e se tornarem suas vítimas. Em semelhante caso, é necessário balancear as vantagens e os inconvenientes” [3].
Eis, aí, a nossa tarefa como discípulos sensatos de Kardec: desmascarar a hipocrisia e a mentira!
Kardec escreveu na “Revue Spirite” de Março de 1863, numa dissertação intitulada “A luta entre o passado e o futuro”, a seguinte observação [7]: “O Espiritismo não é uma Doutrina que caminha na sombra; ele é conhecido, seus princípios são formulados de maneira clara, precisa e sem ambiguidade”.
E ele mesmo, complementa: “A calúnia, pois, não poderia atingi-lo; basta, para convencê-la de impostura, dizer: lede e vede. Sem dúvida, é útil desmascará-la; mas é preciso fazê-lo com calma, sem aspereza nem recriminação, limitando-se a opor, sem discursos supérfluos, o que é do que não é”.
Para, então, finalizar com uma advertência e orientação precisas: “deixai aos vossos adversários a cólera e as injúrias, guardai para vós o papel da força verdadeira: o da dignidade e da moderação”.
Temos, destarte, que a mentira só pode durar enquanto não se oferece a razão como elemento de sua destruição. Então, sabemos que, mais cedo ou mais tarde, qualquer mentira será desmascarada pela luz da verdade.
Apesar disso, nós, espíritas, não compreendemos ainda e plenamente a totalidade desse ensinamento. Se o tivéssemos entendido em sua essência, monitoraríamos com mais cuidado nossas ações e pensamentos, evitando a substância insidiosa que dá origem a deturpações de ordem psicossocial, emocional e física.
Considerando o aspecto progressista que nos impulsiona, pergunto: estamos realmente avançando na escala progressiva? É claro que sim. Embora haja obstáculos em nossa caminhada espiritual, é natural que muitos se encontrem em estado de resistência ou de dúvida. O importante é que, com paciência e compreensão, possamos caminhar juntos rumo ao progresso espiritual.
Obstáculos à Verdade no Progresso Espiritual.
Perplexos pela era da IA – Inteligência Artificial, que não é, sabemos, tão artificial assim –, nos vemos sufocados por um excesso de informações que carecem de formação intelecto-moral para serem bem compreendidas.
Ironicamente, muitos espíritas, que deveriam ser exemplos na condução e divulgação da verdade, acabam se deixando levar pelos devaneios do personalismo e das mentiras. Estaríamos diante das chamadas “Fake News” Espíritas?
Reconheço que pode soar forte, mas não se trata de uma cobrança a quem quer que seja, e sim de um alerta urgente para um retorno à responsabilidade original, antes encoberta. Não há o que temer, não há o que se envergonhar… Não estamos tratando de retrocessos, mas de reconhecimento e humildade.
Nesse ínterim, é importante recordar um dos mais significativos trechos do tratado espírita: “Avançando com o progresso, o Espiritismo jamais será superado, pois, se novas descobertas demonstrarem estar em erro em um determinado ponto, ele se modificará sobre esse ponto. Se uma nova verdade se revela, ele a aceita” (“A Gênese”, Cap. I, Item 55, “in fine”) [8].
As incógnitas são salutares e, quando aprofundadas e debatidas com seriedade, nos impulsionam ao progresso. Nesse contexto, é importante lembrar que o espírita, em sua formação, se fundamenta em bases teóricas e práticas, manifestando-se por meio do exemplo e do impacto transformador da Doutrina Espírita, sempre sob o amparo da caridade, da ética e da moral em todas as áreas da vida.
Quanto às lideranças espíritas, os “influencers” conforme a definição do momento, compete salientar que não há cargos no Espiritismo, mas encargos. Portanto, aqueles que se manifestam como espíritas se colocam na posição de “estar” e não “ser”. Quem é, então, espírita, de fato, plenamente e por todo o tempo?
A lição de La Fontaine.
Conta-nos a fábula de La Fontaine [9] que, em certa ocasião, a Mentira e a Verdade resolveram nadar para se refrescar em um lago. Após saírem das águas, a Mentira, sempre astuta, vestiu-se com as roupas da Verdade e passou a caminhar entre os outros, disfarçada em sua aparência. Assim, por muito tempo, as pessoas passaram a acreditar que ela era, de fato, a Verdade. No entanto, apesar da Mentira tentar esconder sua verdadeira natureza, a essência da Verdade acaba se revelando. Então, a Mentira se expõe, deixando sua falsidade em evidência. A mentira, embora infiltrada no coletivo por um período, acaba sendo descoberta, enquanto a Verdade, sem enfeites, mas autêntica, é por fim identificada por aqueles que a observam com atenção.
A moral da história é óbvia: por mais que a mentira possa se disfarçar e enganar por algum tempo, ela sempre será revelada pela luz da verdade. A fábula ensina que, mesmo que a mentira consiga enganar temporariamente, a verdade é intransigente e, eventualmente, se impõe.
Essa fábula serve como uma ilustração perfeita para refletir sobre como a mentira pode se infiltrar nas nossas vidas, distorcendo a realidade. Mas, a verdade sempre prevalecerá, sendo reconhecida por aqueles que buscam e estão dispostos a enxergar além das aparências.
Como reflexão, podemos afirmar: Quem tem olhos para ver, que veja; e quem tem cabeça para pensar, que pense!
Por fim, o que não se encerra.
O que fizemos, então, com o Espiritismo? De fato, ele se tornou uma ferramenta de conforto para muitos, mas será que estamos realmente seguindo os ensinamentos que Kardec nos deixou?
Por isso, apesar da mentira, por vezes, estar ofuscando a percepção da verdade, sabemos que sua luz sempre se fará presente, à medida que todos buscarem sinceramente o esclarecimento.
Como dizia Renato Russo [10], “mentir pra si mesmo é sempre a pior mentira”. Como Espíritas, temos compromisso com a verdade, e, conforme o ensinamento de “O evangelho segundo o Espiritismo”, “não se pode servir a Deus e a Mamon” (Capítulo XVI) [3].
A esperança que carregamos, de fato, pode parecer – por vezes, como um sorvete derretendo sob o sol –, frágil e efêmera. Contudo, ela renasce, sólida e revigorada, inclusive a partir das correspondências e documentos do Professor francês, que compõem o acervo de Canuto de Abreu e do Projeto Cartas de Kardec. Isto nos oferece o verdadeiro alicerce para nossa fé.
Por fim, o que não se encerra, compete-nos retomar o caminho reforçando nosso compromisso com o criador da Doutrina dos Espíritos. A transição que se apresenta a nós, proposta no citado acervo, exige de nós um aprofundamento contínuo, para além do que muitos estão dizendo e interpretando.
Ainda há, então, tempo de reverter isso. No entanto, é essencial que, como espiritistas, possamos enfrentar essas contradições e buscar o verdadeiro esclarecimento. Sem melindres, acredito.
A Verdade como Alicerce da Fé Espírita.
Uma frase de Kardec [3] que exalta a coragem, muitas vezes esquecida, está presente em “O evangelho segundo o Espiritismo” (Capítulo XX, Item 4), destacando que o espírita verdadeiro é reconhecido “pela sua transformação moral e pelos esforços que faz para dominar suas más inclinações”. É necessária coragem, assim, para enfrentar a si mesmo e perseverança para vencer as más tendências.
Feito está o convite, resta-nos seguir adiante. Caminhemos com determinação, pois, a Luz foi recolocada sobre o alqueire.
Referências:
[1] KARDEC, A. O livro dos Médiuns: guia dos médiuns e dos evocadores. Trad. J. Herculano Pires. 20. Ed. São Paulo: LAKE, 1998.
[2] HARARI, Y. N. Sapiens: uma breve história da humanidade. Tradução de Janaína Marcoantonio. 2. Ed. São Paulo: L&PM Editores, 2015.
[3] KARDEC. O evangelho segundo o Espiritismo. Traduzido por José Herculano Pires. 20. Ed. São Paulo: LAKE, 1998.
[4] Referência a duas obras psicografadas, no Século XX, pelo médium Francisco Cândido Xavier e assinadas pelo Espírito André Luiz.
[5] NASCIMENTO, M.; BRANT, F. Carta à República. Composição Musical. Álbum Milton e o Clube da Esquina, 1980. Disponível em: <https://www.vagalume.com.br/milton-nascimento/carta-a-republica.html>. Acesso em 22. Jan. 2025.
[6] BÍBLIA SAGRADA. Trad. Almeida. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.
[7] KARDEC, A. Revue Spirite. Trad. Salvador Gentile. Araras: IDE, 2000.
[8] KARDEC, A. A Gênese: os milagres e as predições segundo o Espiritismo. Obra Original de 1868. São Paulo: FEAL, 2021.
[9] LA FONTAINE, J. As Fábulas de La Fontaine. Trad. Domício Proença Filho. São Paulo: Nova Fronteira, 2005.
[10] RUSSO, R. Há Tempos. Composição Musical. Álbum “As Quatro Estações”, Legião Urbana, 1989. Disponível em: <https://www.vagalume.com.br/legiao-urbana/ha-tempos-cifrada.html>. Acesso em 22. Jan. 2025.
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