Que verdade nos fará libertos?

Tempo de leitura: 6 minutos

Por Jerri Almeida, Marcelo Henrique, Marco Milani, Milton Medran Moreira (Grupo ECK)

“Conhecereis a verdade e ela, a verdade, vos fará libertos”, Yeshua.

“Eu sou o início, o fim e o meio”, Paulo Coelho/Raul Seixas.

Foram praticamente doze anos de colóquios sobre os, até então, mistérios da Natureza e do Universo. Quando o Professor francês – que já conhecia os princípios do Magnetismo animal e já havia observado a algaravia em relação aos fenômenos das mesas girantes e dançantes nos animados e festivos salões de Paris – resolveu aceder ao insistente convite de amigos para comparecer às “sessões com os mortos”, constatando uma causa inteligente (espiritual) por detrás dos efeitos (materiais e inteligentes).

Quando o cientista se convenceu da realidade extrafísica e da possibilidade real da comunicação entre os “dois planos” existenciais, realizou o hercúleo intento da sistematização de uma nova ciência – ainda que filosófica, como muitas outras – descrevendo-lhe princípios e fundamentos e, principalmente, aplicando um método de aferição, seleção e confirmação das mensagens obtidas de várias fontes (considerando os Espíritos comunicantes e os médiuns que as obtiveram).

Exemplificativamente, Kardec mesmo relatou, em um de seus textos, que aproveitou cerca de dois por cento da quantidade de mensagens recepcionadas, podendo, disto, entendermos que o critério era estrito e rigoroso.

Eis, aí, um caminho de verdade. Se é falível – porque se baseou no intelecto e na percepção dos homens (e vale salientar que, na Terra do Século XIX, tanto quanto na ambiência atual do planeta azul, não há uma variação significativa entre os encarnados, ou seja, a distância entre uns e outros se mede em intelecto e moral, mas não pressupõe estarmos, nós, diante de seres “perfeitos” ou infalíveis) – a metodologia de Rivail segue sendo para os espíritas a mais adequada e precisa, seja em face da própria investigação e ciência aplicada que ele realizou, seja porque, passados mais de cento e sessenta anos, não se concebeu outro melhor ou superior.

Assim sendo, diante do tema desta composição coletiva, cabem algumas digressões filosóficas, sempre dentro do “espírito” do Espiritismo, qual seja o da progressividade dos ensinos espíritas.
Entendemos, inicialmente, que o conhecimento da Verdade seja a compreensão da realidade existente, considerado o contexto tempo-espaço. E, por consequência, quanto mais evoluirmos espiritualmente, mais teremos as condições necessárias para essa compreensão plena.

Logo, não podemos ficar “parados” no período kardeciano (1857-1869), como se estivéssemos diante de “cláusulas pétreas espirituais”, dogmatizando e erigindo um altar santificante para rendermos homenagens (eternas) ao homem e à sua obra. Cada vez mais nos convencemos que Kardec nos abriu uma porta, nos ofereceu o tapete vermelho de entrada da “casa espiritual”, o que nos permite – caso queiramos e tenhamos acuidade e excelência científico-metodológica – continuarmos a explorar os cômodos do edifício do conhecimento espiritual. Isto não significa, no entanto, declarar suas obras como ultrapassadas ou decadentes, diante de outras “revelações” (mensagens egressas de consciências mais adiantadas por meio da mediunidade OU resultados de experimentos científicos consubstanciados em teses – as quais, pela própria condição da materialidade científica de todos os tempos, não são definitivas e podem, elas também, serem anuladas ou superadas por resultados de novas pesquisas).

E o espírita? Será que está “aberto” e disposto para tais entendimentos? Ou se vincula à ideia de que Kardec é MAIS e, portanto, nenhum homem estaria à altura de sua condição de “sistematizador” ou “codificador”? Ou, ainda, adotando uma postura pararreligiosa (ou, até, religiosa, se considerarmos que o segmento majoritário espírita concebeu um “tríplice aspecto” formado por ciência, filosofia e religião para o Espiritismo), abraça um ideário que é totalmente contraditório em relação à posição filosófico-científica de Rivail, para acolher como irrefutáveis produções mediúnicas, do século passado e deste, assinadas por “ilustres” e recepcionadas por médiuns que são considerados como “de reputação ilibada”.

Eis, aí, um comportamento que já é padrão no chamado “movimento espírita” e que se afastou completamente da verdade científico-filosófica espírita.

Como, contudo, este ensaio a oito mãos, produzido a partir de digressões e estudos no grupo “Espiritismo COM Kardec”, na plataforma Facebook, não se propõe a apresentar diagnoses sobre a ambiência espírita composta por grupos, instituições ou pessoas, vamos apresentar algumas provocações a partir da própria “letra” contida na obra primeira, analisando-a sob aspectos de logicidade, cientificidade e, acima de tudo, progressividade.

 

Busquemos a referência pontual, em “O livro dos Espíritos”, Capítulo II (“Elementos Gerais do Universo”), item 17:

“Pode o homem conhecer o princípio das coisas?
– Não. Deus não permite que tudo seja revelado ao homem, aqui na Terra.

Obviamente que a pergunta de Kardec tem como pano de fundo o Gênesis, isto é, a origem do Universo e de todas as coisas. Embora, lá na fase madura da sua produção literária espírita, ele fosse publicar o livro “A Gênese, os milagres e as predições segundo o Espiritismo”, a última de suas obras, já aqui, ao tratar do Universo e seus elementos (Espírito e Matéria), quis o Codificador iniciar uma discussão e análise sobre veros “dilemas” da ciência humana e sua incapacidade de lidar com o sobrenatural, por ser impróprio o objeto em relação à tipologia científica (material) de todos os tempos.

Quando o Espírito Superior apresenta, cabalmente, a expressão “Deus não permite que tudo seja revelado ao homem na Terra”, estamos diante de uma figura de linguagem que se aproxima muito da concepção “teísta”, de um Deus que não deixa, não permite o conhecimento. Na verdade, trata-se da “superfície” da informação, isto é, um fragmento da ideia de profundidade.

No conjunto da teoria espírita, é plenamente perceptível que o conhecimento sobre “o princípio das coisas” ou, ainda, sobre os “fins últimos” obedece, não uma “vontade pessoal de Deus”, no sentido vulgar, rasteiro, da ideia, mas decorre de um processo previsto, ordenado, sábio, de conquista do conhecimento de forma gradativa. Assim, tal conhecimento (verdade) é adquirida ao longo das múltiplas vivências, como “pré-requisitos” (numa linguagem pedagógica) para se elaborar os raciocínios e alcançar os conhecimentos mais complexos. Isto, numa perspectiva acadêmica ou epistemológica de análise.

 

Os gregos, a propósito, utilizavam algumas palavras para significar esse processo: transitamos da Agnosis (ignorância) para a Dóxa (opinião) e, desta, para a Epistêmia (conhecimento racional). Platão, por exemplo, usava a metáfora dos prisioneiros na caverna que observavam sombras, até o momento em que um deles se liberta, usando como instrumento a dialética e ultrapassa o muro, pelo esforço do pensamento, atingindo uma realidade mais exuberante e profunda, fora da caverna.

Por outro lado, e levando-se em conta, por observação sistêmica, em relação à identidade de grande parte dos Espíritos comunicantes inseridos na Codificação Espírita, como sendo vultos religiosos do passado, um elemento precisa ser considerado. O sentido da frase “Deus não permite”, da questão em análise, volta-se, também, para os limites da compreensão das coisas que naturalmente apresentamos hoje, mas não como resultado de um Deus antropomórfico das religiões tradicionais que atua sobre o homem por uma vontade igualmente humana. E é possível perceber que a “fala” do Espírito carrega este “tom religioso” e praticamente antropomorfiza a divindade.

Vale dizer que o discernimento humano e sua capacidade de compreender vão do zero ao infinito. Tiveram um início, na fase contida no conceito “criado simples e ignorante” (o Espírito) e vão num crescendo que talvez não tenha fim (progresso infinito) e que Kardec e os Espíritos denominaram “perfeição” (embora entendamos que pudesse melhor ser definido como “plenitude”). Então, por esta análise, não é Deus que permite ou deixa de permitir. Ele é a “inteligência suprema e a causa primária de todas as coisas” e, não, esse senhor que ajuíza sobre as conveniências ou inconveniências do conhecimento, tal como Jeová no Paraíso Terrestre.

Temos, portanto, um acentuado desconforto em relação a expressões como “Deus não permite que isso seja revelado ao homem”, a perguntas pra lá de instigantes de Kardec. Mas, dê-se o desconto: Kardec e os Espíritos de então precisavam utilizar a linguagem do paradigma até então vigente para criarem as condições para o advento de um novo paradigma, que é aquele do qual nós estamos nos acercando. Não dá para medir ou definir qual o tempo de o homem conhecer estes ou aqueles princípios cuja compreensão ainda não lhe tenha sido possível. Nem os Espíritos entrevistados por Kardec, humanos que são todos, detinham autoridade para tanto. Esse é um processo gradual e progressivo.

Sem dúvida, podemos constatar que a(s) Ciência(s) avançou(aram) enormemente, do Século XIX até aqui. Mas, vivemos sob a égide de teorias, como a do “big bang”, a mais adequada, até agora, ao nosso nível de conhecimento. Assim, enquanto não atingirmos aquele possível ponto da “perfeição” (novamente a figura talvez meramente metafórica empregada por Kardec e os Espíritos), poderemos afirmar, de forma um tanto simplória, que “Deus não nos está permitindo conhecer”.

O cerne, porém, da filosofia espírita reside no princípio cartesiano da permanente dúvida, capaz de nos levar a relativos conhecimentos. Estes jamais são vedados por Deus, mas se apresentam como desafios a serem enfrentados pela ciência. A racionalidade humana é a mais forte expressão da divindade em nós.

Deste modo, vamos continuar buscando o entendimento da “verdade”, mesmo que esta não tenha o condão de ser definitiva, plena, perfeita ou acabada. Como costumamos repetir nos grupos de estudo, não são as respostas definitivas ou o mais importante. Porque elas, as respostas, nos descortinam novas perguntas. Sucessivamente. Infinitamente. E isto, Deus “nos permite” fazer: buscar o conhecimento possível!

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

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