Quem é o Jesus dos Espíritas em geral?, por Marcelo Henrique

Tempo de leitura: 7 minutos

Marcelo Henrique

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Chamar Jesus de Nazaré, o Yeshua, ou o Magrão, de Cristo é o grande ERRO de Allan Kardec. E isto influenciou e continua influenciando os espíritas em geral em reconhecerem, indevidamente, uma condição surreal, metafísica, sobre-humana para o personagem, distanciando-o de sua missão corporal e da nossa própria realidade.

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Natal. É Natal, novamente… A cada ano que passa, vejo repetidas as formulações de desejos que são repartidos pelas pessoas, seja as que já se conhecem, seja um transeunte ou alguém nos supermercados ou lojas da vida. Evidente que o “espírito natalino” contagia a todos (ou quase) e as pessoas se enchem de bons sentimentos e intenções – embora, nem sempre, no trânsito ou nas filas, isso seja materializado.

Enfim, é Natal… E como é o “Natal dos Espíritas em geral”? Qual é o entendimento dos espíritas sobre o personagem Jesus? O que se diz dele? Em que se acredita? Que papel tem esse Jesus na vida daqueles que aceitam, professam, seguem o Espiritismo?

Majoritariamente, os espiritistas ainda não se libertaram do Mito Jesus-Cristo. A construção filosófica, pedagógica e personalista da Igreja Católica Apostólica Romana ainda é muito evidente e marcante entre os espíritas. O indivíduo Jesus, assim, tem traços e contornos ainda fortemente religiosos, em torno de um personagem que contém muito misticismo e sobre o qual se erigem teorias que fundamentam dogmas e sacramentos pertinentes àquela Igreja.

Estes conceitos são intuitivamente repetidos pelos espiritistas, como se pertencessem ao conceito e a visão espírita sobre o Homem de Nazaré. Como, marcantemente, o pensamento cristão do Ocidente, expresso em “n” igrejas ou seitas é derivado da composição originária ditada pela Cúria Romana, desde que ela foi oficializada pelo Império Romano, as explicações e informações sobre Jesus, o Cristo de Deus, guardam bastante sintonia ou sinergia entre si. E o espírita neófito, muito entusiasmado ou pouco estudado em relação aos fundamentos espiritistas, reproduz a visão cristã e nela se baseia, seja nas atividades ditas doutrinárias seja no percurso da vida laica, e seus contornos em distintos ambientes em que se localiza.

Assim é que os espíritas, ainda bastante impregnados por este caldo cultural e pela “boca torta do cachimbo” (consideradas a atual existência e as anteriores, neste Planeta, em face das incursões da grande maioria de nós em movimentos religiosos ditos cristãos), acabam repetindo – mesmo que inconscientemente – suas “crenças” acerca daquele Carpinteiro de Nazaré.

Vamos aos erros mais comuns:

  • Jesus seria o Filho de Deus. Filho único, em termos de qualificação de sua posição, “sentado à direita do Pai”. Mas, como se “crê” que ele, Jesus, é nosso irmão, somos ou não, todos, filhos de um mesmo pai, Deus? Somos, mas… E aí os espíritas gaguejam, porquanto ainda consideram como pontual a (grande) diferença evolutiva que há entre ele e nós. Um filho com “precedências”, “vantagens”, “regalias”… Mais simples seria dizer, com anteparo na própria Filosofia Espírita, que a ascendência notória e característica de Jesus se dá em virtude de todo um passado de várias existências, a partir de sua criação idêntica a nossa, como Espírito simples e ignorante, mas avançando pelos próprios méritos, para se credenciar como um dos Avatares/Guias/Modelos que a Humanidade (deste Planeta e a de outros, de todos os matizes) têm conhecido em suas trajetórias ascensionais.
  • Jesus foi concebido por um “milagre” e sua mãe, Maria (Myriam) de Nazaré permaneceu virgem. E a fábula muito bonita da “Anunciação” (lembro, aqui, da música de Alceu Valença – “tu vens, tu vens, eu já escuto os teus sinais”, ou, ainda, mais liturgicamente, “A voz do anjo sussurrou no meu ouvido, Eu não duvido, já escuto os teus sinais; que tu virias numa manhã de domingo, eu te anuncio nos sinos das catedrais”). E há quem repita, nas tribunas espíritas, até emocionadamente, “Mãe Santíssima”, “Maria, Mãe de Deus” e “Imaculada”, para adjetivar a genitora do homem-rabi. O correto, distante da fábula, é compreender a gestação de Jesus como decorrente de uma circunstância física, material, natural, uma gravidez resultante de conjunção carnal (ato sexual), cuja existência se dignifica, e não, miticamente, se traveste em fantasia e absurdo.
  • Dúvidas sobre a condição corporal de Jesus, que não teria, segundo dizem muitos, condições de suportar, fisicamente, as macerações que seu corpo sofrera, no episódio de sua prisão, julgamento, paixão e crucificação. Daí a “facilidade” em aceitar a natureza não-humana, não-corporal-material de Jesus, tal qual consta da teoria docetista do advogado francês, contemporâneo de Kardec, J.B.-Roustaing, que apresenta-nos um Jesus agênere, de corpo fluídico, apenas “materializado” na Terra para cumprimento de uma “missão sublime”. Um Jesus “aparente”, tido, pelos espíritas daqui e de alhures, como ESPÍRITO PURO (dentro da classificação contida em “O livro dos espíritos”, na Escala Espírita). Dentre os qualificativos dos Espíritos que se encontram na PRIMEIRA ORDEM e CLASSE ÚNICA (questões 112 e 113 da obra citada), tem-se: “Tendo alcançado a soma de perfeição de que é suscetível a criatura, não têm mais que sofrer provas, nem expiações. Não estando mais sujeitos à reencarnação em corpos perecíveis, realizam a vida eterna no seio de Deus”, conforme nossos grifos. Do contrário, considerando o conjunto de informações contidas em toda a Codificação e, só para ficar enquadrado o contido na obra em comento, a primeira de Kardec, a pioneira, temos no item 111, que traz as características dos Espíritos da SEGUNDA ORDEM e SEGUNDA CLASSE, “Quando, por exceção, encarnam na Terra, é para cumprir missão de progresso e então nos oferecem o tipo da perfeição que a Humanidade pode aspirar neste mundo”. Texto que, aliás, é corroborado pelo contido em outra questão, a de número 625, quando os Espíritos respondem a Kardec quando perguntados sobre que espíritos seriam considerados guias e modelos para os homens terrenos: “Vede Jesus”. Adiantadíssimos, mas ainda não na condição de plenitude fina, espíritos do quilate do homem-carpinteiro-pescador-de-homens estariam na condição de superioridade (mas não ainda de perfeição), tendo sido submetidos a uma vida material (encarnação) com a missão de serem o tipo de espiritualidade possível à Humanidade aspirar, neste orbe. Jesus, assim, foi um homem, com virtudes e defeitos, envolto na condição de ser humano, com as limitações que a carne impõe a todo e qualquer Espírito, numa existência que compreendeu provas, expiações e uma destacada missão, sobretudo ensinando, na prática, o percurso que nos fará, um dia, a nos assemelharmos a ele. E,
  • Insistência numa (im)possível natureza divina de Jesus, impondo-lhe uma existência sisuda, compenetrada ao extremo, pesada (porque sabia, ele, desde o princípio, que seria perseguido “em nome da Verdade” e que padeceria todos os males que são, litúrgica ou evangelicamente conhecidos – paixão, crucificação e morte – escorada na culpa judaico-cristã que, além do “pecado original” (cometido pelos lendários Adão e Eva, símbolos igualmente míticos dos primeiros exemplares da raça humana sobre este orbe), enquadraria a “perseguição” e o assassinato do “Filho do Homem” como de responsabilidade de toda a Humanidade. Culpa carregada por séculos e séculos, amém, mas minorada pela “subserviência” aos dogmas e às prescrições de comportamento estabelecidas pelas Igrejas aos seus “fiéis”. Jesus, mesmo nas reuniões espíritas costumeiras, ainda é um personagem DISTANTE. Cria-se uma “aura” desnecessária em torno do Mestre, como se ele, ao estar ENCARNADO, não tivesse circunstâncias naturais, e seus comportamentos não fossem, em regra, aqueles comuns aos homens daquele tempo. Jesus se alimentou, repousou, trabalhou, se divertiu, teve momentos de lazer e contentamento, assim como de tristeza e melancolia. Sendo assim, por que não teria ele vivenciado as experiências comuns aos homens – sobretudo considerando as condições do cenário de mais de dois mil anos atrás e as limitações conjunturais da vida material daqueles tempos primevos? Não teria discutido com aqueles que não “concordavam” com ele (vide a descrição evangélica do episódio da “expulsão dos vendilhões do templo”? Não teria se decepcionado com a falta de coragem e tenacidade dos seus amigos mais próximos, repreendendo-os em muitas ocasiões (como na “pesca maravilhosa” e no “momento de oração no Horto das Oliveiras)? Não teria se enamorado por alguma moça, com predicados, vivendo um amor sublime, mas enquadrado nas questões ainda humano-corporais pertinentes a todos nós que habitamos neste planeta, tendo se consorciado com tal mulher e tido, até mesmo, uma prole? O que diminuiria a MISSÃO de Jesus o fato de ter, verdadeiramente, amado alguém MAIS DO QUE OS OUTROS, seus irmãos em Humanidade, a ponto de numa sociedade extremamente atrasada, preconceituosa e machista, dado projeção, entre os doze que escolheu para serem seus seguidores mais próximos, apóstolos, discípulos, ela Myriam de Migdal (Maria Madalena), presença marcante nos três anos de vida pública e exemplificativa do Rabi? Quanto mais resgatarmos a proximidade do homem Yeshua – a quem apelidamos carinhosamente de Magrão – com as nossas condições humanas da atualidade, nossas limitações e defeitos, assim como nossas virtudes e esperanças, teremos muito maior facilidade de com ele nos identificarmos, para, como ele mesmo nos exortou: “Na verdade, na verdade vos digo que aquele que crê em mim também fará as obras que eu faço, e as fará maiores do que estas” (Jo; 14:12).

É fato que os espíritas, mais carolas, evidentemente, mais afeiçoados a tradições, liturgias e formações culturais-religiosas, se ESCANDALIZAM ante a proposta HUMANIZADORA do Carpinteiro nascido em Belém. A aproximação, por fatos ainda em nível de cogitação, já que a Igreja cuidou de “eleger” suas narrativas oficiais sobre a Vida de Jesus e destruir, pela Inquisição, qualquer documento que não estivesse em sintonia com suas liturgias construídas habilmente no curso dos séculos, pela ação inteligente de muitos expoentes de seus quadros, alguns, até, reconhecidos “doutores”, pode representar a tais religiosos espíritas, uma BLASFÊMIA ou um MENOSPREZO da “missão divina” daquele que chamam de Jesus Cristo.

Cristo, aliás, como personagem construído pela doutrina da Igreja e cultuado séculos afora, corresponde a um “grau de evolução”, o Crístico, expressão utilizada por diversas seitas, muitas delas espiritualistas. Chamar Jesus de Nazaré, o Yeshua, ou o Magrão, de Cristo é o grande ERRO de Allan Kardec, e isto influenciou e continua influenciando os espíritas em geral em reconhecerem, indevidamente, uma condição surreal, metafísica, sobre-humana para o personagem, distanciando-o de sua missão corporal e da nossa própria realidade. Leia-se, a propósito, o próprio subtítulo/preâmbulo de “O evangelho segundo o Espiritismo”, além de muitas outras referências, seja de Kardec, seja dos autores de mensagens mediúnicas. No primeiro, Kardec sucumbiu à “tentação” de considerar o personagem da religião romana: “Contendo: a explicação das máximas morais do Cristo, sua concordância com o Espiritismo e sua aplicação às diversas situações da vida”).

O erro crasso de Kardec, assim, consiste na invocação de toda a “construção histórica” do personagem mítico-mitológico Jesus Cristo, Ungido de Deus, Verbo que se fez Carne, Cordeiro de Deus, e tantos outros associados, alguém que NUNCA EXISTIU, não tem registros históricos conhecidos e é a materialização das “predições” também de natureza religiosa, do JUDAÍSMO e, depois do CRISTIANISMO CONVERTIDO EM RELIGIÃO DO IMPÉRIO ROMANO, oficial e obrigatória, com todos os “milagres”, “sacramentos”, “mandamentos” e tudo o mais.

Este, meus amigos, não é o JESUS DO ESPIRITISMO. Não é o Jesus, Espírito encarnado. Não é o Jesus Guia, Modelo de Perfeição à Humanidade. Não é o bebê que nos emociona por nascer DE NOVO, todos os anos, na data fictícia de 25 de dezembro. Não é o menino Jesus que nos alenta e acalenta, nos alegra e energiza, nos completa e aproxima, nos infunde ânimo para sermos melhores a cada dia…

O Jesus dos Espíritas Sensatos NÃO É o Jesus “do” movimento espírita. Este último é, infelizmente, ainda, o mito cristão, que traz em si elementos que não agregam, mas afastam em relação àqueles que não sejam seguidores de uma ou outra doutrina ou religião. Um Jesus do “Cristianismo Redivivo”, ou do “Consolador Prometido”, nem, tampouco do “Coração do Mundo e da Pátria do Evangelho” que são expressões que repetem os erros do passado, de povos ou instituições que se julgaram acima das demais, porquanto segregacionistas, pedantes e preconceituosas.

O Jesus que eu desejo homenagear e visitar, na manjedoura do coração de cada amigo que eu encontrar nestes 24 e 25 de dezembro – e nos dias que os seguirem – é o Jesus de uma proposta LIVRE, HUMANISTA, PROGRESSISTA, LAICA mas plena de RELIGIOSIDADE ÍNTIMA, já que a verdadeira religião é a do AMOR, incondicional, fraterno, total, dos homens pelos homens, no mundo inteiro e no Universo das Encarnações

Feliz Natal, então, não com o mito, mas com o HOMEM JESUS!

Imagem de Thomas por Pixabay

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

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