Por Aristides Coelho Neto
Eram onze da noite quando o último convidado partiu. Gabi recolheu-se. Rivail ainda foi para o escritório. Findava o dia 18 de abril de 1857, talvez o mais importante de sua vida.
Passamos pela basílica Notre-Dame de Lorette, subindo a pé na direção do bulevar de Clichy, onde fica o Moulin Rouge, como quem se dirige à praça do Tertre, em Montmartre. A partir do segundo semestre de 1855, o ilustre professor a quem vamos nos referir passava sempre ao lado dessa igreja quando subia também a pé para casa. Demos então com a rue des Martyrs, nosso objetivo maior.
Uma feira interessante acontecia. Calçadas largas, não há necessidade de interromper o trânsito de veículos. Antiguidades, iguarias, chapéus, guloseimas, todo tipo de arte, bibelôs, frutas. Chamam a atenção as enormes framboesas e os cogumelos. Subimos pela calçada da direita. Chegamos ao número 8. A porta estava fechada.
Naquele endereço moraram prof. Rivail (Hippolyte Léon Denizard Rivail) e sua esposa Amélie Gabrielle Boudet à época do lançamento d’O Livro dos Espíritos, que se deu em 18 de abril de 1857. Rivail, a partir desse dia, seria conhecido no mundo como Allan Kardec, o Codificador do Espiritismo. Por aquele apartamento de aspecto despojado, no assessoramento da nobre missão do respeitado mestre, além do Espírito Verdade, provavelmente passaram figuras ilustres, como Benjamin Franklin, Swedenborg, São Luís, Platão, Erasto, Pascal, Lammenais, Vianney, Paulo de Tarso e tantos outros.
Eu e Elise ficamos sem saber bem o que fazer diante da porta fechada, como a obstar a realização de um sonho — conhecer o local por onde entrara por tantas vezes Rivail. O prédio conservava o mesmo caráter modesto de outros tempos. Aliás, o casal de intelectuais sempre vivera modestamente. Foram para aquele apartamento em julho de 1855. O contrato se estendia até 1858. Possivelmente seria a última moradia alugada, já que esperavam a casa própria, ainda em construção, na Vila Ségur, bairro dos Invalides. Por esses anos, há bem pouco tempo tinha sido instalada iluminação a gás. Mas as velas altas e grossas, em castiçais de metal, eram ainda um complemento imprescindível.
Seguimos em frente, passando pela Hippolyte Lebas, depois Choron, Manuel, cruzando com a Tour D’Auvergne, depois com a Condorcet. Na avenida Trudaine passamos para a calçada do outro lado da rua, descendo novamente pela feira, parando para admirar os objetos curiosos expostos. A maioria deles nos reportava a tempos idos. E logo estávamos de volta ao número 8.
Atravessamos de novo a rua. Conversei com um senhor do restaurante ao lado do número 8. Minhas conversas sempre são prefaciadas com “je ne parle pas bien le Français…”. Isso geralmente me abre as portas. Abre mais ainda quando digo “je ne parle pas un mot de Français”. E os franceses riem. Ele entendeu que eu desejava entrar e fotografar, já que ali morara pessoa muito importante. E se ele conhecia alguém que pudesse abrir a porta. Ele mesmo abriu. Confiou.
Agradeci. Antes de entrar, porém, olhei de relance a rua. Misteriosamente não enxerguei mais os automóveis que passavam entre as barracas. Não havia barracas. Um landau estava em frente o bar. Notei que um pedaço de madeira em cunha calçava a roda da frente para que o carro não desandasse pela via inclinada. Os cavalos, de olhos fechados, descansavam pacientes à espera do condutor. Do outro lado, um coche mais simples, com apenas um cavalo. Dois homens sentados à mesa bebiam bourbon com leite. Comiam brioche. Várias crianças de mãos dadas desciam para a igreja, vestidas com pompa de domingo. Não havia mais asfalto: pedras sem aparelhamento cobriam a rua.
Dei falta de minha câmera. Pressenti que não era mais final de outono. O clima estava ameno agora. Era domingo de primavera, dia posterior ao 18 de abril de 1857, que marcou a França com o lançamento do livro que deu início a uma jornada nova no campo do pensamento no mundo. Estávamos, pois, no dia 19.
Subimos devagar os degraus de madeira que dão acesso aos dois apartamentos do segundo andar. Acima, um terceiro ainda, e um telhado aproveitado, onde surgem duas águas-furtadas, janelas verdes. O apartamento de Rivail e Amélie era o da direita. Nosso pisar cuidadoso tinha algo de reverência. Estávamos a poucos metros do apartamento onde O Livro dos Espíritos havia sido burilado e muitas vezes revisado — sob o olhar percuciente e firme do espírito que se chamou Verdade e de uma plêiade de colaboradores que tiveram seus nomes estampados posteriormente em O Evangelho Segundo o Espiritismo. Dentre eles Santo Agostinho, João Evangelista, São Vicente de Paulo, Sócrates, Fénelon, Swedenborg, Hahnemann…
A porta estava entreaberta. À nossa chegada, o deslocamento de ar afastou mais um pouco a porta do batente. Dei quatro batidas de leve. Nada. Bati de novo mais forte. Ninguém respondeu. Segui o impulso de entrar, mesmo sem ninguém em casa. Paixão ofuscando a razão? Quem sabe. Entrei. Elise não quis. Resolveu esperar do lado de fora. Chamei pelos dois:
— Monsieur Rivail… madame Boudet…
Não havia ninguém realmente.
O layout do apartamento, de corredor longo, não era muito funcional. Tinha área útil de cerca de 50 m². O quarto era logo na entrada e era dividido por um biombo de madeira, dando espaço a um escritório. A seguir, uma sala também dividida por um cortinado de veludo vermelho-escuro, formando dois ambientes: estar e jantar. Lá no fundo, a cozinha. No andar, o banheiro era comum aos dois apartamentos. Todos os cômodos davam para o corredor comprido. A ventilação, obviamente, era do lado contrário a essa circulação. O apartamento de Rivail e Gabi não tinha as janelas voltadas para a rue des Martyrs. Ou seja, as janelas davam para um pátio interno. Todas elas tinham cortina de enrolar, com bainhas largas.
O escritório para mim era a parte mais importante da casa. Voltei a ele, tropeçando em um dos chinelos do professor, que saíra com Gabi e esquecera a porta aberta. Apesar das dimensões acanhadas, comportava um conjunto de carvalho antigo com uma escrivaninha, uma poltrona, duas cadeiras e uma estante em madeira e vidro abarrotada de livros. O casal trouxera do Instituto da rua de Sèvres.
Muitos quadros nas paredes. O maior era um creiom de Pestalozzi. Havia também uma fotografia de Rivail de meio-perfil pelo método de vapor de iodo sobre metal prateado. Tinha 10 anos, mas era ainda considerada novidade. Na parede também desenhos e esboços de Gabi, a creiom e a bico de pena — os quadros a óleo estavam na sala de visitas. Na parede, ainda, muitos diplomas de sociedades culturais.
Na sala de visitas atapetada, com seus móveis em mogno, uma estante mais sofisticada, com portas de cristal, em madeira trabalhada e pintada a óleo. Dentro, os livros preferidos de Gabi e os três de sua autoria, em lombada vermelha, com letras douradas. Nas filas superiores, os livros de Rivail assinados como H.L.D. Rivail ou H. Denizard, em lombadas de couro gris polido e letras douradas, denunciando um homem de inteligência e cultura multifacetadas. Rivail pedagogo, professor de aritmética, geometria e gramática francesa. Tradutor de francês para alemão, do inglês, alemão, italiano e espanhol para francês.
Já na sala de jantar, os móveis eram de carvalho, em verniz marrom. No chão, um tapete com motivo floral. Dentre os quadros, uma réplica da Última Ceia, de Da Vinci.
No dia anterior Rivail e Gabi receberam convidados. Comemoraram naquele sábado especialíssimo o lançamento d’O Livro dos Espíritos, cujos originais haviam sido entregues a Dentu em janeiro. Tentei imaginar como as pessoas haviam se posicionado no pequeno apartamento, que não poderia receber muito mais de vinte pessoas. Devem ter se espalhado por todos os aposentos, geralmente em pequenos grupos. Claro que não estou levando em conta os desencarnados, que eram muitos.
Os convidados, ou eram pessoas queridas do casal Rivail, ou estiveram ligadas à concretização da obra que vinha a lume — ou estariam ligadas à edição ampliada que viria. Segundo Dr. Canuto Abreu, eram eles: casal Baudin, as jovens Caroline e Julie Baudin, senhora Plainemaison, casal Dufaux e sua filha Ermance Dufaux, senhor Japhet e sua filha Ruth Japhet, casal Roustan. Diz-se que Roustan teria sido Dimas, o bom ladrão, à época do Cristo. Dentre os convidados, também o professor Canu e esposa, o livreiro Clément e esposa, casal Leclerc, casal Roger, o negociante Carlotti e sua filha Aline, a quiromante De Cardone e o senhor Fortier.
As conversas, com certeza, foram animadas. Pessoas gentis, cultas, educadas, espiritualizadas, que comungavam objetivos nobres, a maioria delas unida por um ideal comum. Ao final, o senhor Kardec discursara. E quanto à prece, imprescindível, de agradecimento a Deus, a Jesus, ao Mundo Maior, fiquei a imaginar onde o emérito professor ficara, de pé, para proferi-la, quando se encheu de luz o ambiente, o que foi testemunhado pelas garotas médiuns presentes. Eram onze da noite quando o último convidado partiu.
Estava na hora de eu sair também. Elise, paciente, estava sentada na escada quando encostei a porta. Descemos.
Ao sair, a feira se fazia presente. O burburinho era grande. Buzinas. Barulho de carros passando, gente carregando os materiais após desmontagem.
Não vislumbrei exatamente o que acontecera naquele 27 de outubro de 2012. De uma coisa eu tinha certeza — os relatos de Canuto Abreu, em seu O Livro dos Espíritos e sua tradição histórica e lendária, tinham invadido a minha mente. Afinal, eu entrara ou não no apartamento de Kardec?
Aristides Coelho Neto, 18 de abril de 2013 (156 anos depois…)
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NOTA — Este texto foi publicado em Reformador nº 2.281 (ano 137), de abril de 2019.
Que leitura agradável!
Impecável descrição do ambiente. Eu vi e enxerguei tudo, todos os detalhes. Andei por lá também.
Emocionante.
Respondendo à questão: Se entrou na casa de Kardec, não sei, mas se viajei contigo, isso eu fiz.
Maravilha de artigo.