Marco Milani
Durante toda a sua trajetória, o Codificador se pautou pelo rigor metodológico e argumentação criteriosa baseada na razão. Qualquer conteúdo supersticioso ou de fragilização e de inconsistência doutrinária, que distorça os conceitos espíritas, presentes na quinta edição devem nos endereçar a tomar como legítima, apenas, a quarta.
Algumas pessoas ainda estão em dúvida se as alterações no texto da 5ª edição francesa da obra “A Gênese: os milagres e as predições segundo o Espiritismo”, são doutrinariamente relevantes. É uma dúvida saudável, pois incentiva o estudo comparativo da edição original com essa edição publicada posteriormente à morte de Allan Kardec.
Em todos os seus 18 capítulos, na 5ª edição de “A Gênese” registram-se supressões, acréscimos e/ou reordenamentos de trechos e até de itens inteiros. Em alguns capítulos, não houve comprometimento doutrinário significativo, porém, em outros, houve. Um desses é o Capítulo XVIII, intitulado “Os tempos são chegados”.
Adicionalmente, os comentários abaixo, também referenciados em outras obras, objetivam apenas detalhar algumas relações conceituais que favorecem o exame desse capítulo de A Gênese.
O ensino dos Espíritos, analisado, organizado e publicado por Allan Kardec, é bastante claro ao se contrapor a crendices supersticiosas e místicas que vinculam o destino das pessoas à influência dos astros. Cada ser humano possui livre-arbítrio e é responsável por seus atos e consequências, sendo irrelevante a posição astronômica em que os orbes celestes se encontravam quando o indivíduo nasceu.
Sobre esse tema, podemos citar, por exemplo, a questão nº 867, de “O livro dos Espíritos”, reproduzida a seguir:
867. Donde vem a expressão: Nascer sob uma boa estrela?
“Antiga superstição, que prendia às estrelas os destinos dos homens. Alegoria que algumas pessoas fazem a tolice de tomar ao pé da letra.”
Igualmente, Kardec critica a ilusória influência que as constelações teriam sobre os homens no Capítulo 5, item 12, na própria obra A Gênese, tanto em sua 1ª edição quanto na 5ª edição. Após consistentes esclarecimentos sobre os motivos de já não se poder levar a sério tal crendice diante do avanço do conhecimento, assim ele conclui o item:
“A crença na influência das constelações, sobretudo das que constituem os doze signos do zodíaco, proveio da ideia ligada aos nomes que elas trazem. Se à que se chama leão fosse dada o nome de asno ou de ovelha, certamente lhe teriam atribuído outra influência.”
Como movimento natural do desenvolvimento das ideias, certamente a humanidade progride desvendando a realidade baseada em fatos, conjecturando e analisando as causas dos diferentes fenômenos observados. Nesse sentido, Kardec situa a astrologia e outras tentativas de explicar a realidade e prever acontecimentos como a expressão do conhecimento de determinada época, mas que foi superada pelo avanço da ciência. No Capítulo 1, da obra O que é o Espiritismo, durante o diálogo com o cético, Kardec assim escreve:
Antes dos progressos sérios da Astronomia, acreditava-se na Astrologia. Será razoável dizer-se que a Astronomia para nada serve, por que já não se pode encontrar na influência dos astros o prognóstico do destino?
Assim como a Astronomia destronou os astrólogos, o Espiritismo veio destronar os adivinhos, os feiticeiros e os que liam a buena-dicha. Ele é, para a magia, o que é a Astronomia para a Astrologia, a Química para a Alquimia.
Ao questionar se os acontecimentos já estavam fatalmente determinados, Kardec obteve a seguinte resposta na questão nº 851, de O Livro dos Espíritos, em que se destaca a clara separação entre provas físicas e decisões morais dos indivíduos:
851 – Há uma fatalidade nos acontecimentos da vida, segundo o sentido ligado a essa palavra, quer dizer, todos os acontecimentos são predeterminados? Nesse caso, em que se torna o livre-arbítrio?
“A fatalidade não existe senão pela escolha que fez o Espírito, em se encarnando, de suportar tal ou tal prova. Escolhendo, ele se faz uma espécie de destino que é a consequência mesma da posição em que se encontra. Falo das provas físicas, porque para o que é prova moral e tentações, o Espírito, conservando seu livre-arbítrio sobre o bem e sobre o mal, é sempre senhor de ceder ou resistir. Um bom Espírito, vendo-o fraquejar, pode vir em sua ajuda, mas não pode influir sobre ele de maneira a dominar sua vontade. Um Espírito mau, quer dizer, inferior, mostrando-lhe, exagerando-lhe um perigo físico, pode abalá-lo e assustá-lo; mas a vontade do Espírito encarnado não fica menos livre de todos os entraves.”
Acontecimentos físicos, portanto, não implicam fatalidades sob o aspecto moral, dado o livre-arbítrio do homem. As transformações morais dependem das escolhas e ações dos Espíritos, independentemente de ocorrências físicas, sejam essas coletivas ou individuais.
Naturalmente a humanidade progride sob os aspectos morais e intelectuais e, individualmente, o Espírito nunca retroage (“O livro dos Espíritos”, item 118). Considerando que há épocas em que esses progressos se caracterizam de maneira mais intensa, é possível registrar momentos marcantes que atestam essa marcha evolutiva. No Capítulo I, do livro “O evangelho segundo o Espiritismo”, temos, por exemplo, as três revelações como movimentos evolutivos do conhecimento sobre a realidade espiritual e nossa relação com Deus, com muitos séculos de espaçamento entre elas. Sob a perspectiva espiritual, esses movimentos podem ser previstos porque os seres evoluem e é por isso que os Espíritos afirmaram a Kardec que o período de regeneração da humanidade já havia se iniciado. Isso não se trata de previsão astrológica, mas natural desenvolvimento moral.
Os registros bíblicos que associam o final dos tempos (para início da era de regeneração) estavam fartamente associados a imagens que deveriam impressionar os sentidos e o senso comum.
No item 50, do Capítulo XVII, de “A Gênese”, ao tratar dos sinais precursores, encontramos uma citação evangélica, novamente usando a figura da queda de estrelas:
“50. Logo depois desses dias de aflição, o Sol se obscurecerá e a Lua deixará de dar sua luz; as estrelas cairão do céu e as potestades dos céus serão abaladas. Então, o sinal do Filho do homem aparecerá no céu e todos os povos da Terra estarão em prantos e em gemidos e verão o Filho do homem vindo sobre as nuvens do céu com grande majestade. (Mt, 24:29-30)”.
Os Espíritos explicaram, no item 54 desse Capítulo XVII, que esse quadro do fim dos tempos “era evidentemente alegórico”, para impressionar inteligências ainda rudes. No item 55, destacam que “entre os antigos, os tremores de terra e o obscurecimento do Sol eram acessórios forçados de todos os acontecimentos e de todos os presságios sinistros”, e ainda comentam que a figura de uma queda de estrelas do céu “não passa de ficção”.
Assim, imagens ficcionais relacionadas a vaticínios povoaram a imaginação de gerações, fazendo com que as crendices supersticiosas do passado ainda possam estar presentes no comportamento atávico de muitas pessoas.
Uma pessoa em particular, entretanto, não demonstrou nenhuma tendência mística e supersticiosa durante a estruturação da Doutrina Espírita: Allan Kardec.
Durante toda a sua trajetória, o Codificador se pautou pelo rigor metodológico e argumentação criteriosa baseada na razão.
Estranhamente, há uma nota do autor (ou seja, supostamente de Kardec) acrescentada na 5ª edição de “A Gênese”, referente ao item 10, do Capítulo XVIII, o qual trata de relações entre acontecimentos físicos e morais, reproduzida a seguir:
“Nota: A terrível epidemia que, de 1866 a 1868, dizimou a população da Ilha Maurícia foi precedida por uma chuva tão extraordinária e tão abundante de estrelas cadentes, em novembro de 1866, que os habitantes ficaram terrificados. A partir desse momento, a doença, que grassava desde alguns meses de maneira muito benigna, tornou-se um verdadeiro flagelo devastador. Sem dúvida houve um sinal no céu, e talvez nesse sentido que era preciso entender as estrelas caindo do céu de que fala o Evangelho, como um dos sinais dos tempos. (Detalhes sobre a epidemia da Ilha Maurícia, Revista Espírita, julho de 1867, p. 208; novembro de 1868, p. 321.)”.
Allan Kardec faria a afirmação supersticiosa de que “sem dúvida” a chuva de estrelas cadentes era um “sinal dos céus” para algum flagelo?
Para explorar o assunto, faz-se necessário ler sobre a epidemia ocorrida na Ilha Maurícia, na “Revue Spirite”, de novembro/1868. Duas cartas escritas por espíritas moradores nessa ilha foram lidas na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas e, depois, verificaram-se comunicações mediúnicas sobre o caso.
Especificamente, em trecho da segunda carta lida na ocasião, o missivista afirma:
“[…] Em nosso ponto de vista espiritualista, poderíamos ver aí uma aplicação do prefácio do Evangelho Segundo o Espiritismo, porque o período nefasto que atravessamos foi marcado, no começo, por uma extraordinária chuva de estrelas cadentes, caída em Maurícia na noite de 13 de para 14 de novembro de 1866. Posto que o fenômeno fosse conhecido, por ter sido muito frequente de setembro a novembro em certa épocas periódicas, não é menos admirável que, desta vez, as estrelas cadentes foram tão numerosas que fizeram tremer e impressionaram os que as observaram. Esse imponente espetáculo ficará gravado em nossa memória, porque foi precisamente depois desse acontecimento que a moléstia tomou um caráter aflitivo. Desde esse momento tornou-se geral e mortal, o que hoje nos pode autorizar a pensar, como diz o Dr. Demeure, que chegamos ao período de transformação dos habitantes da terra, por seu adiantamento moral.”
A respectiva Nota, atribuída a Kardec, na 5ª edição captura parte do conteúdo da carta acima do habitante da Ilha Maurícia, cujo embasamento doutrinário é altamente questionável, pendendo para a interpretação supersticiosa dos “sinais dos céus” pressagiando acontecimentos terríveis associados ao período de regeneração da Terra. O missivista se posicionar expressando crendices do passado é compreensível, pois o amadurecimento doutrinário varia de pessoa para pessoa, porém seria surpreendente se Kardec assim se expressasse.
Logo após a leitura das cartas, registrou-se a comunicação mediúnica de Clélie Duplantier, em 16/10/1868. Tal comunicação, é passível de análise quanto ao conteúdo. A seguir, apresentam-se os parágrafos iniciais da mensagem:
“Em todos os tempos fizeram preceder os grandes cataclismos fisiológicos de sinais manifestos da cólera dos deuses. Fenômenos particulares precediam a irrupção do mal, como uma advertência para se prepararem para o perigo. Essas manifestações, com efeito, ocorreram não como um presságio sobrenatural, mas como sintomas da iminência da perturbação.
Como tivemos oportunidade de dizer-vos, nas crises em aparência as mais anormais que dizimam passo a passo as diferentes regiões do globo, nada foi deixado ao acaso; elas são a consequência das influências dos mundos e dos elementos uns sobre os outros (outubro de 1868); elas são preparadas de longa data, e sua causa é, por consequência, perfeitamente normal.
A saúde é o resultado do equilíbrio das forças naturais; se uma doença epidêmica devasta qualquer lugar, ela não pode ser senão a consequência de uma ruptura desse equilíbrio; daí o estado particular da atmosfera e os fenômenos singulares que aí podem ser observados.
Os meteoros conhecidos pelo nome de estrelas cadentes são compostos de elementos materiais, como tudo o que cai sob os nossos sentidos. Eles não aparecem senão graças à fosforescência desses elementos em combustão, e cuja natureza especial por vezes desenvolve no ar respirável, influências deletérias e mórbidas. As estrelas cadentes eram, para a Ilha Maurícia, não o presságio, mas a causa secundária do flagelo. Por que sua ação se exerceu em particular sobre aquela região? Primeiro, porque, como disse muito bem o vosso correspondente, ela é um dos meios destinados a regenerar a Humanidade e a Terra propriamente dita, provocando a partida de encarnados e a modificação dos elementos materiais. Depois, porque as causas que determinam essas espécies de epidemias em Madagascar, no Senegal e por toda parte onde a febre palustre e a febre amarela exercem sua devastação não existem na Ilha Maurícia, a violência e a persistência do mal deveria determinar a pesquisa séria de sua fonte e atrair a atenção sobre a parte que aí podiam tomar as influências de ordem psicológica”.
As mensagens publicadas na “Revue Spirite” são registros históricos relevantes e fontes de pesquisa, porém há diferentes tipos de comunicações, conforme o grau de conhecimento e elevação moral do Espírito comunicante. A mensagem acima inicia-se de maneira evidentemente mística, fazendo referência à cólera dos deuses e às supostas crises fatalistas “preparadas de longa data”, além de reforçar uma suposta inter-relação de acontecimentos físicos com a regeneração moral da humanidade, caracterizando-se por desencarnações coletivas. Chega a associar influências mórbidas e deletérias dos elementos químicos dos meteoros no “ar respirável” da região em que se precipitam, assim as estrelas cadentes agora não seriam mais um presságio (como sinalizado no início da comunicação), mas em uma “causa secundária do flagelo”!
Na “Revue”, Allan Kardec não comentou, nem as cartas dos moradores da Ilha Maurícia nem as respectivas comunicações mediúnicas. Estranhamente, foram acrescentados no Capítulo XVIII, da 5ª edição, itens sobre a influência mútua dos astros relacionados a acontecimentos morais (ver o item 10, por exemplo) e, gerando perplexidade, também foi acrescentada uma Nota “do autor” com teor supersticioso.
Diante desses fatos, cada leitor pode ponderar se o conteúdo supersticioso deve ser atribuído a Kardec. A mesma pergunta é possível de ser feita diante de fragilizações e outras inconsistências presentes nos demais capítulos dessa 5a. Edição de “A Gênese”, que anuncia em sua capa “revista, corrigida e aumentada”. Na dúvida ou reconhecendo que as alterações distorcem os conceitos espíritas, fiquemos com a edição original.
Que se queira aceitar as alterações, mas, basta um mínimo de esforço á razão e a resposta é clara: Não foi Kardec.