Simplismos, Achismos e Falácias, por Marcelo Henrique

Tempo de leitura: 7 minutos


Quando as especialidades em áreas do mundo são incapazes de versar sobre assuntos espirituais.

Marcelo Henrique

 

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Recomendável é que pessoas dotadas de conhecimentos vagos e ideias generalistas (não raro, também, preconceituosas) não realizem críticas de prejulgamento e de depreciação de pessoas ou instituições, sobretudo quando relacionadas a expressões de fé e religiosidade, sejam ou não religiões.

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Vez por outra, vários de meus contatos têm me enviado vídeos em que certas personalidades do ramo “coach”, palestrantes de renome, autointitulados de professores ou filósofos tecem considerações sobre vertentes da prática espiritualista no Brasil. E, muitas vezes, o “alvo” das opiniões – e não são nem mais nem menos que isso, apenas opiniões – são as chamadas condutas espíritas, associando suas falas a eventos, fatos noticiados pela mídia ou pessoas vinculadas a atividades ou instituições espíritas.

Devo salientar, primeiramente, que não sou contrário à manifestação de opinião, nem poderia ser, tanto por minha trajetória como jornalista, quanto na de jurista. Sob a égide da Constituição Federal brasileira, vigente desde 1988, o direito à livre expressão e à livre manifestação de opinião acha-se assegurado, garantido e qualquer tentativa de obstáculo ao livre pensamento manifesto é punível na forma da lei.

Óbvia e obrigatoriamente, a mesma espada que concede a prerrogativa também ceifa os excessos, punindo abusos e desrespeitos, bem como as ofensas à moral das pessoas envolvidas, prejudicadas em face da opinião manifesta por outrem, quando a Justiça se utiliza da balança que coloca em equidade os polos opostos e em confronto jurídico. Aí estão, portanto, os dois símbolos da deusa Têmis (Themis), que representa a Justiça para o mundo moderno e contemporâneo, remontando aos gregos, originariamente, e aos romanos, ainda que, entre esses últimos, a deusa se chamasse Justitia.

Não é o mote deste artigo falar diretamente de situações específicas em que estivesse sob ataque e desrespeito a honra de pessoas ou instituições ligadas a correntes espiritualistas e, dentro destas, ao Espiritismo.

O mote deste ensaio se dirige ao “direito” de qualquer um se achar “especialista” e, como tal, assenhorear-se de matéria que não conhece, não domina, não se aprofunda, interpretando apenas e tão-somente fatos do cotidiano e atribuindo-lhes valorações, pressupostos, causas e consequências.

A imensa maioria destes “catedráticos” que se ocupam de temas ligados à Espiritualidade – e, muitos deles, evidentemente, pertencentes ao segmento e ao campo de seitas ou religiões – costuma se basear em “juízos comuns”, em apreciações do “vulgo”, que se distanciam tanto da essência quanto da natureza, em grande parte das situações, de questões voltadas ao Estudo do Espírito.

É fato que a Humanidade, mesmo em tempos imemoriais e primitivos, dos quais só temos parcos registros rupestres ou em afrescos artísticos, sempre se interessou pelo sobrenatural, pelo espiritual ou pelo transcendente. Naturalmente, em face da condição de precariedade de conhecimentos e incipientes culturas, praticamente vinculadas ao sobreviver junto à natureza. Época e cenário perfeitos para o mítico e o místico, com a presença efetiva de indivíduos dotados de alguma sensibilidade espiritual – que, em nomenclatura espiritista, se diz MEDIUNIDADE.

Pajés, curandeiros, caciques, entre outras denominações, foram, a seu tempo, os protagonistas na explicação dos “mistérios” entre a Terra e o Céu, tratando do império e da atuação das forças espirituais sobre pessoas, coletividades e raças. E, não raro, obtendo benefícios de variado matiz, entre glórias, honrarias, presentes e valores, inclusive financeiro-monetários.

Um elemento importante que é o nexo e o vínculo entre as situações espirituais e os humanos envolvidos é o interesse. Para quê? Por quê? Como? Quais as consequências? Estas e outras perguntas devem estar sempre na pauta quando o contexto for o de inter-relacionamento entre pessoas para tratar de questões afetas à espiritualização ou espiritualidade.

Estabelecidas essas premissas, voltemos ao tópico principal que nos motiva a escrever este ensaio.

O que é o Espiritismo? O que é a Mediunidade? Todos os que mantêm algum contato ou intercâmbio com os Espíritos são espíritas? Existe um único “modo de ser” ou “modo de entender” o Espiritismo?

Evidentemente que não. Livros e religiões, seitas ou filosofias não existem de modo absoluto. São estáticos e amorfos. Existem enquanto tese. Se resumem aos escritos e recomendações feitas por alguém, em determinado intervalo da História da Humanidade, passando, a partir daí, a ser interpretados e “postos em movimento”, por meio de ações (humanas).

Em essência, há católicos, protestantes, evangélicos, espíritas, budistas, maometanos, hinduístas, etc., que são intérpretes e acreditam nos pressupostos das filosofias ou religiões de que se constituem seguidores, fiéis ou adeptos. E, como o viés interpretativo é pessoal e único, quem será o melhor intérprete? Quem estará agindo fidedignamente em relação aos pressupostos ideológico-filosóficos de uma religião, em todas as situações?

Perguntas de difícil resposta…

O que os “especialistas” citados no início deste texto mais fazem é interpretar “facetas”, “detalhes”, “condutas pessoais”, “nuances”, “exemplos isolados”, dando-lhes o caractere de generalidade e, por consequência, o de oficialidade ou de natureza ou essência.

Um pequeno exemplo. Durante décadas, o pessoal do “showbusiness” brasileiro visitou um médium (do tipo “curandeiro”) para receber informações do “Além” ou realizar procedimentos de atendimento, auxílio ou assistência a dores físicas ou espirituais (psíquicas). No entorno, entre os espíritas vinculados a instituições regulares – que nós chamamos de “movimento federativo”, nacionalmente estruturado e que congrega centros ou instituições espíritas em todo o país – havia um misto de curiosidade, de admiração e respeito, e algumas manifestações de desconfiança, em função de informações egressas da mídia, em reportagens escritas ou de vídeo, em programas de audiência nacional.

Quando, um certo dia, ocorreu o escândalo, decorrente de investigações policiais e judiciais sobre a conduta (humana) do aludido médium, divulgando-se a sucessão de crimes por ele cometidos, inclusive no âmbito sexual, a imensa maioria dos espíritas, vinculados a grupos, centros ou federativas, assim como responsáveis por meios de difusão espírita (sites, blogs, listas ou grupos de comunicação), se arvoraram em “juízes não togados” e se apressaram em dizer: – Ele não é espírita! – Ele nunca foi espírita, mas espiritualista! – O fato de ser médium e interagir com desencarnados não significa ser espírita! – O Espiritismo não endossa suas práticas! Entre outras manifestações…

É ou não é? Quando é e quando passa a não ser mais? Quando pode ser “enquadrado” como espírita e quando não pode? Outras perguntas quase sempre sem respostas válidas e pertinentes…

Como não é necessário abordar os contornos da situação acima – até porque à época já escrevemos acerca dos fatos públicos – mas tratar de forma objetiva e pontual as “falas” dos tais “especialistas”, que se arvoram em críticos e em conhecedores da “religião espírita” brasileira, pretendemos enumerar alguns elementos, para, ao final, concluirmos nossa análise.

É o que faremos.

  1. O Espiritismo, enquanto filosofia ou doutrina originária, é obra da organização de um homem, cujo nome (pseudônimo) é Allan Kardec, que foi responsável pela redação e publicação de todas as obras ditas espíritas (trinta e duas ao total) e que coordenou pessoalmente as ações e atividades do primeiro centro espírita do mundo, a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas;
  2. Àquela época (1857-1869), centenas (talvez milhares) de instituições de motivação espiritualista-espírita apareceram e vigoraram na França, em outros países da Europa e em outras partes do mundo. Receberam, pois, material, correspondência e orientações de Kardec, que jamais interferiu ou disciplinou condutas, apenas realizando recomendações e sugestões;
  3. O Espiritismo não é, jamais foi ou, na vontade de Kardec, não seria uma religião. E este é o elemento que deveria ser levado em consideração pelos “críticos”, “especialistas”, “comentaristas” e “opinólogos” (sim estou criando um neologismo para destacar, uma vez mais, que as “análises” são desprovidas de qualquer lastro de essência e conteúdo, representando meras opiniões de quem se assume como julgador de condutas alheias);
  4. Por não ser uma religião, nem formalmente nem na sua constituição prática – embora seus adeptos assumam, em identificações de registros, formulários e documentos que possuem uma religião, a espírita, e, em regra, não estejam vinculados a nenhuma das religiões oficialmente estruturadas e organizadas como tal – não há que exigir-se conformações e padronagens, isto é, não é possível dizer (da mesma forma como os espíritas se manifestaram após os escândalos com o conhecido médium) que TUDO é Espiritismo ou NADA é Espiritismo. Sob pena de enquadrar-se “tudo” como sendo, ou de deixar de lado aquilo que “não lhe parece ser”;
  5. O sentido natural de uma ideia, em qualquer área do conhecimento humano, é a de ser acessada (lida, em regra, mas também podendo ser ouvida) e, depois, ser entendida e interpretada. É por isso que, acima, falamos da filosofia ideal, originária, expressa em livros e documentos, “neutra” e que requer “materialização”, objetividade e realidade, na atuação de um ou mais indivíduos;
  6. Neste sentido, há modos de ver o Espiritismo, modos de o sentir e o expressar, alcançando, portanto, uma infinidade de atitudes e condutas, todas elas interpretativas. E cada uma delas representa a forma de interpretação com base no entendimento que decorre do nível intelectual-sensorial-sensitivo de cada ser, individualmente falando;
  7. O Espiritismo também não possui um “órgão central mundial”, uma espécie de “vaticano”, de onde seriam emitidas normas de comportamento e a quem se delegaria o poder de censura e julgamento sobre atitudes de pessoas ou de instituições. Este é um ponto claro que diferencia o meio espírita das demais conjunturas religiosas do Brasil e do Mundo, em que todas as demais se acham estruturadas sob regras rígidas e dependentes de uma autoridade (individual ou coletiva), em caráter religioso;
  8. Para o Espiritismo, o que importa são as intenções (no agir) e as consequências de cada ato humano. Para além da mera forma, vige a essência e ela é responsável pela preocupação na disseminação do bem e pela prática do amor nas interrelações pessoais;
  9. Obviamente que o Espiritismo, enquanto filosofia, possui princípios e fundamentos que decorreram das próprias experimentações e vivências de seu fundador-criador-organizador, Allan Kardec, e das obras que ele escreveu – estas, contendo, como se sabe, informações obtidas mediunicamente e reputadas a inteligências invisíveis em condições espirituais superiores às dos humanos (encarnados) –, que são, ao mesmo tempo, estruturais em termos da configuração filosófico-doutrinária espírita, quanto prescritivas, no sentido de recomendações de boas práticas (isto é, aquelas condizentes aos objetivos do próprio Espiritismo); e,
  10.  A manifestação individual de qualquer adepto – mais ou menos conhecido, famoso ou anônimo, local ou nacionalmente – é, apenas e tão-somente, a expressão individualizada de UM entendimento (pessoal, particular) acerca do Espiritismo, seus pressupostos e fundamentos e suas bases lógico-racionais. O intérprete, assim, não é “mais” nem “menos” espírita que ninguém e nem a sua manifestação ou ação pode ser reputada “ao” Espiritismo, como se o representasse.

Este contexto é significativo, inclusive, para evitar que pessoas dotadas de conhecimentos vagos e ideias generalistas (não raro, também, preconceituosas) realizem críticas de prejulgamento e de depreciação de pessoas ou instituições. Em muitos casos, também, é bastante comum as confusões interpretativas em que se “misturam” práticas do Espiritismo (Kardecista) com outras “linhas” de atuação, sejam elas compostas de sincretismos religiosos diversos, adotando-se práticas que não estão na “liturgia” originária de Kardec, ou conciliando-as com crenças e atavismos individuais ou coletivos. E, ainda, a “confusão” entre Espiritismo e Espiritualismo, entre Espiritismo e Umbanda, entre Espiritismo e Candomblé, ou, até, em instituições que se utilizam de ornamentos, adereços, objetos, vestes e rituais de uma ou mais religiões conhecidas.

Por isto tudo, é sempre recomendável prudência. Primeiro em relação ao que não se conhece. Segundo em relação ao respeito às expressões de fé e crença, que ultrapassam as meras convenções e entendimentos de quem não professa a mesma ideologia. E, terceiro, para tratar com equidade e fraternidade, sem estabelecer comparativos ou eleição de superioridade/inferioridade em relação a culturas, etnias, filosofias, crenças e religiosidades.

E, em tudo, que cada um possa fazer o que melhor lhe caiba, para a difusão da tolerância e da boa convivialidade!

Imagem de Robert Nilsson por Pixabay

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

One thought on “Simplismos, Achismos e Falácias, por Marcelo Henrique

  1. Hoje e sempre existiu e existe aqueles que querem ser idolatrados como o grande conhecedor de todo os assuntos. Kardec no Livro dos Médiuns já dizia no item 12 …”Em lógica elementar, para se discutir uma coisa, preciso se faz conhecê-la, porquanto a opinião de um crítico só tem valor quando ele fala com perfeito conhecimento de causa. Então, somente, sua opinião, embora errônea, poderá ser tomada em consideração. Que peso, porém, terá quando ele trata do que não conhece? A legítima crítica deve demonstrar não só erudição, mas também profundo conhecimento do objeto que versa, juízo reto e imparcialidade a toda prova, sem o que, qualquer menestrel poderá arrogar-se o direito de julgar Rossini1 e um pintor de paredes o de censurar Rafael.”

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