Suicídio na população trans: possíveis ações do meio espírita, por Gabriel Lopes Garcia

Tempo de leitura: 6 minutos

Por Gabriel Lopes Garcia

Os espíritas não podem se omitir diante das injustiças sofridas pela comunidade trans, pois é incompatível com os princípios doutrinários. É imperativo que instituições — federações, centros e coletivos — assumam publicamente uma postura de defesa intransigente dos direitos dessas pessoas, rejeitando todo discurso de ódio ou exclusão.

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Nicholas Domingues Monteiro, 20 anos, era aluno do Bacharelado Interdisciplinar de Ciências Humanas na Universidade Federal de Juiz de Fora. Homem trans, integrava o projeto Visitrans [1] na UFJF e militava na União da Juventude Comunista. Cometeu suicídio em 5 de julho de 2017. Pouco antes do episódio fatal, ele publicara um desabafo na internet, do qual separamos o seguinte trecho (negritos nossos):

Como se não bastasse todo o sentimento em relação ao corpo, temos que aguentar a opressão e enfrentar diariamente os olhares esquisitos no banheiro, temos que aguentar nossos nomes desrespeitados e a falta de oportunidades no mercado de trabalho e uma junção disso tudo mata muito.

O ato do jovem vem se juntar a uma trágica realidade de muitos outros indivíduos transgêneros que se matam em decorrência do desespero em que se encontram, sem enxergar outra solução para os sofrimentos experimentados devido à sua identidade de gênero. A identidade de gênero é como você pensa a respeito de si mesmo, é o sexo psíquico, aquilo que a criatura sente ao se olhar no espelho. Atualmente, são catalogadas nas pesquisas as identidades: feminina, masculina, nenhuma das duas ou ambas. Convém registrar que transgênero é a pessoa não adequada ao gênero previamente estabelecido ou socialmente atribuído ao nascimento. Não se trata de um conceito rígido, pois não há um modo único de ser transgênero, e engloba travestis, transexuais e queers.

Identidade de gênero diz respeito à experiência interna e individual relacionada ao gênero com o qual a pessoa se identifica. A identidade de gênero não está necessariamente relacionada com características biológicas tipicamente atribuídas aos sexos masculino e feminino. Há pessoas que se identificam com um gênero diferente daquele do seu nascimento. Quando a identidade de gênero de uma pessoa corresponde ao seu sexo biológico, dizemos que essa pessoa é cisgênera. Quando, por outro lado, a pessoa se identifica com um gênero diverso daquele que lhe foi designado ao nascer, trata-se de pessoa transgênera ou, simplesmente, trans.

O suicídio é uma causa recorrente de morte da população trans brasileira e faz-se necessário investigar os motivos e discutir estratégias de prevenção. O Espiritismo pode e deve contribuir nesta grave questão com os conhecimentos oriundos do intercâmbio mediúnico e as práticas acolhedoras nas instituições espíritas. As campanhas de valorização da vida promovidas nos movimentos espíritas devem trabalhar também as necessidades das minorias, em particular das pessoas LGBTQIAPN+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros, Travestis, Queer, Intersexuais, Assexuais, Pansexuais, Não-Binários e outras identidades e orientações sexuais não mencionadas na sigla e gêneros fluidos). O tema ainda é tabu, mas precisa ser amplamente debatido para contemplar essa população tão discriminada. Ausência de amparos familiar, social e institucional; humilhações; constrangimentos; eis o fardo que pesa às costas dos irmãos transgêneros.

Estatísticas e contextos

Diante desta perspectiva árida, muitos companheiros fragilizados e abandonados entregam-se às ideações suicidas. Vejamos os dados alarmantes da pesquisa [2] “Os Homens Trans no Brasil: as políticas públicas e a luta pela afirmação de suas identidades”, de Roberto Cezar Maia de Souza, da Faculdade de Psicologia Maurício de Nassau:

66,4% dos homens trans afirmaram já ter pensado em suicídio; destes, 41,5% já tiveram pelo menos uma tentativa de suicídio e 28,2% tiveram duas tentativas.

Para fazer um paralelo, a população em geral tem o índice de 3% de uma tentativa de suicídio. Estimativas feitas nos EUA pela ONG National LGBTQ Task Force apontam em

41% o índice de pessoas trans que já tentaram suicídio naquele país, contra 1,2% da população cisgênero.

Uma pesquisa do Williams Institute (Universidade da Califórnia, Los Angeles) publicada em 2014 estimou em

40% as pessoas trans que já atentaram contra a própria vida.

Outra pesquisa da Columbia University (Nova Iorque, Estados Unidos) informa que o índice de suicídio é cinco vezes mais frequente na população LGBTQIAPN+.

Os números indicam claramente os efeitos nocivos da transfobia na vida das pessoas transgêneras. A discriminação sistemática baseada na identidade e na expressão de gênero, bem sintetizadas pelo depoimento de Nicholas no parágrafo inicial, produzem consequências desastrosas. Compete ao espírita lúcido e estudioso participar dos esforços e das ações em favor das lutas que dignifiquem a existência dos irmãos que atravessam a experiência trans.

Os movimentos espíritas precisamos fazer uma autocrítica honesta no tocante ao convívio com a população LGBTQIAPN+, pois habitualmente são tratados com desrespeito, isolados do convívio ou expulsos dos trabalhos, considerados obsidiados. Figuras famosas e/ou idolatradas na comunidade espírita, movidas por vaidades e aplausos insensatos, pioram a situação ao exprimir opiniões preconceituosas, sem embasamento científico e recheadas de moralismo barato.

Todos estes comportamentos revelam ignorância e medo, que estimulam a discriminação, que pesam na carga de dores dos nossos irmãos, afastando-os da frequência aos centros espíritas, locais em que deveria prevalecer o comportamento caritativo a TODOS que lhe busquem o acolhimento. A moral ensinada pelos Espíritos, explicada nas obras de Kardec, aponta a compaixão e a indulgência como diretrizes de conduta reta. Precisamos melhorar o convívio junto aos irmãos na experiência trans. As pesquisas indicam quantitativamente o que o contato direto e franco com eles revela em detalhes: enfrentam provações acerbas nas variadas formas de rejeição da sociedade e sofrem violências múltiplas (xingamentos, agressões físicas, bullying, dentre outras).

O papel do meio espírita

Os movimentos espíritas também precisamos assumir responsabilidades na melhoria de condições de vida destes companheiros evolutivos, a começar pelo estudo da sexualidade. Tarefa fundamental e contínua: estudar. Somente o estudo da sexualidade, em especial as questões de identidade de gênero, poderá nos dar condições de abordar o assunto e as pessoas, baseados em conhecimentos científicos produzidos por pesquisadores de diversas áreas (sociais, educacionais, biológicas, psicológicas etc.) dialogando com o material espírita. O passo inicial para superar o preconceito é sair da ignorância que o fundamenta. É necessário promovermos palestras públicas, grupos de estudos, seminários, estudos nas Mocidades, aulas para as crianças e outras tantas atividades nas quais possamos estudar seriamente sobre identidade de gênero à luz da ciência e da espiritualidade, para melhor compreensão e aceitação da variedade da experiência sexual humana.

Conhecer para conviver harmonicamente com todos. A sequência natural é a convivência rotineira com os companheiros na experiência trans, sem qualquer diferenciação, até porque não há motivos para tal. Acolher os irmãos transgêneros no mesmo regime de igualdade, de respeito e consideração que devemos apresentar a todas as pessoas que buscam as instituições espíritas. Caso desejem ajuda em suas dores, os trabalhadores precisam se preparar para os acolher dignamente, nas instâncias adequadas (atendimento fraterno, por exemplo), sem deboches, sem discriminações, sem trocar orientações por palpites calcados em estereótipos. Nada de inventar falsas explicações da identidade trans distorcendo ideias espíritas (por exemplo de fluidos ou de perispírito), nem usar livros desatualizados. Ouvir com atenção e sem julgamento, acolher com sinceridade, orientar com juízo.

A participação das pessoas trans nos trabalhos das instituições espíritas é essencial para a verdadeira prática da caridade e da inclusão, agregando-as à uma comunidade, criando pertencimento e rede de apoio. O Espiritismo ensina que a alma é imortal e independente do corpo físico, destacando que a identidade de gênero não define o valor moral de ninguém. Rejeitar alguém por sua identidade transgênera contraria o princípio de amor ao próximo e a igualdade dos direitos sociais preconizados pela Doutrina Espírita. Além disso, a diversidade enriquece os trabalhos, reforçando que todos, sem exceção, merecem acolhimento e oportunidade de progresso espiritual. A instituição espírita deve ser um espaço onde prevaleça a fraternidade, onde cada ser humano possa contribuir conforme suas capacidades, independentemente de sua identidade de gênero.

Este conjunto de ações — estudar, conviver, auxiliar, incluir — servirá de suporte aos companheiros transgêneros no enfrentamento dos graves desafios que se lhes apresentam. Encontrando apoio e acolhimento no centro espírita, um irmão transgênero poderá aliviar-se das lutas incessantes e alimentar-se espiritualmente de carinho e boa vontade para aceitar-se como é, sentir-se estimulado a continuar vivendo e seguir em frente criando significados para a sua existência. Uma rede social fraterna com efeitos terapêuticos e guardiã da vida. Os irmãos que estagiam na experiência trans precisam também, como todos nós outros interessados na Doutrina Espírita, de aconchego e orientação, das luzes do Espiritismo para entender a própria encarnação e angariar reflexões e forças.

Abraçado pelo grupo espírita, sentirá esse fluxo amoroso a nutrir sua alma, sentir-se-á acolhido e tratado com dignidade, respeitado em sua identidade de gênero, e por isso mesmo mais propenso a querer continuar encarnado. O aspecto consolador do Espiritismo se baseia na proposta imortalista e reencarnatória, e deve se efetivar na convivência amorosa e inclusiva dos movimentos espíritas. Contribuiremos muito para a prevenção do suicídio dos indivíduos transgêneros caso sejamos mais cuidadosos no trato com estas pessoas na convivência e em nossas atividades.

Os espíritas não podem se omitir diante das injustiças sofridas pela comunidade trans, pois é incompatível com os princípios doutrinários. É imperativo que instituições — federações, centros e coletivos — assumam publicamente uma postura de defesa intransigente dos direitos dessas pessoas, rejeitando todo discurso de ódio ou exclusão. Cabe a nós combater a discriminação com ações concretas: promovendo debates, oferecendo apoio espiritual e psicológico, e exigindo políticas públicas que garantam acesso ao nome social, segurança, saúde, educação e respeito à população trans. Silenciar é compactuar com a violência. A verdadeira caridade exige voz ativa e coragem para transformar a compaixão em gestos que salvam vidas. Os movimentos espíritas têm de acompanhar a vanguarda dessa luta, demonstrando que fé e justiça social caminham juntas na prevenção do suicídio. Vidas trans importam!

Notas:

[1] O grupo tem como objetivo ofertar à comunidade juiz-forana e da zona da mata mineira um espaço de diálogo e de interlocução, entre pessoas travestis e transexuais, com suporte da psicologia social e das abordagens críticas de trabalhos de pesquisa-ação-participativa com grupos, no Centro de Psicologia Aplicada da UFJF.

[2] Realizada em parceria com o Instituto Brasileiro de Transmasculinidades (Ibrat), a pesquisa contou com 242 pessoas de todas as regiões do Brasil. As informações foram colhidas por meio de um questionário estruturado. A faixa etária é predominante de 18 a 24 anos (41%), seguida de 25 a 34 anos (24%), 14 a 17 anos (22%), 35 a 49 (9%), 45 a 54 (3%) e mais de 65 anos (1%).

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

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