Tudo passa, tudo sempre passará, por Gabriel Lopes Garcia

Tempo de leitura: 7 minutos

Gabriel Lopes Garcia

A observação do próprio corpo biológico é uma posição privilegiada para o Espírito acompanhar as mudanças da natureza. O organismo está sujeito ao fluxo imparável das transformações que caracterizam cada ciclo vital. Além disso, os objetos se desgastam, as roupas desbotam, as páginas ficam amareladas, as construções se deterioram, as paisagens são alteradas pelo intemperismo etc. Como canta poeticamente Lulu Santos: “Tudo o que se vê não é / Igual ao que a gente viu há um segundo / Tudo muda o tempo todo no mundo”. [1] Nosso desejo é impotente para deter estes processos de mutação.

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Descobrimos, pela prática vivencial, um conceito filosófico: a matéria é corruptível, isto é, muda constantemente e inevitavelmente nas interações com os elementos ao seu redor. Compreender isso é importante para amadurecer, agindo em harmonia com os ritmos da existência, afinal: “Nada do que foi será / De novo do jeito que já foi um dia”. [1] A impermanência é um conceito profundo e transformador, oferecendo uma visão clara da natureza da realidade e um caminho para a libertação espiritual. Ao abraçá-la, desenvolvemos sabedoria e equilíbrio, libertando-nos do sofrimento causado pelo apego ao que é transitório.

Budismo

O pensamento budista tem valiosas contribuições neste assunto. [2] A impermanência (anitya) é um dos conceitos centrais do Budismo e um dos pilares da sua visão de realidade. Ela se refere à ideia de que todas as coisas, sem exceção, estão em constante mudança, são transitórias e não possuem uma essência fixa ou permanente. A compreensão da impermanência é considerada essencial para alcançar a libertação espiritual (nirvana) e superar o sofrimento (dukkha). A impermanência, para o pensamento budista, está formulada em três princípios: tudo está em fluxo; ausência de um “eu” permanente; ciclos de surgimento e desaparecimento.

O Budismo ensina que todos os fenômenos, sejam materiais ou mentais, estão sujeitos à mudança. Nada no universo é estático ou eterno. Isso inclui objetos físicos, emoções, pensamentos, relacionamentos e até mesmo o “eu”. A impermanência está intimamente ligada ao conceito de não-eu (anatta), que nega a existência de uma alma ou essência imutável. O que consideramos como “eu” é, na verdade, uma coleção de processos interdependentes e em constante mudança. O Budismo descreve a realidade como um fluxo contínuo de surgimento, transformação e cessação. Tudo o que surge está destinado a desaparecer.

Para o pensamento budista, uma das Três Marcas da Existência (tilakkhana) é o sofrimento decorrente da resistência à impermanência. Compreender esse comportamento é fundamental para lidar com a realidade. Nesse texto, vou discutir essa marca, em diálogo com a filosofia espírita: a questão do sofrimento derivado de uma percepção equivocada sobre a dualidade entre mudança e permanência na natureza. Podemos aproveitar a sabedoria do Budismo sobre esse assunto para construir interpretações de ações e pensamentos libertadores, em colaboração com a perspectiva do Espiritismo.

O sofrimento da impermanência

Esse tipo de sofrimento surge do apego às coisas que são impermanentes e da aversão à mudança. As pessoas buscam segurança e permanência em um mundo que é intrinsecamente mutável, o que leva à frustração e ao desapontamento. Compreender e aceitar a impermanência é um passo crucial para superar o sofrimento. Quando se percebe que tudo é transitório, o apego diminui, e a mente se torna mais equilibrada e livre. No mundo moderno, a aceitação da impermanência pode ajudar a lidar com o estresse, a incerteza e as mudanças rápidas da vida cotidiana.

Podemos nos agarrar às posses materiais, ao dinheiro, aos objetos de predileção. Muitas pessoas focam seus esforços de vida em conquistar e manter tais coisas, esquecendo-se de que são temporárias e podem se esvair entre os dedos a qualquer instante. Se algum evento os retira de inopino, a pessoa apegada se sentirá frustrada. Ensina o Espiritismo que a verdadeira propriedade é o que está dentro da alma, e que não somos donos de itens materiais, mas apenas usufrutuários, que adquirimos direito momentâneo de uso e temos responsabilidade pela forma com que os utilizamos. [3]

A recusa ao envelhecimento é outra faceta do problema, pois se o indivíduo se apegar à sua aparência jovem, provavelmente sofrerá por não ser capaz de mantê-la, mesmo que faça vários procedimentos estéticos. Nenhum filtro de edição de imagens nem injeções de qualquer substância impedem o natural processo de ficar velho e ter outro reflexo no espelho. A morte e a doença são lembretes de que tudo é transitório. O corpo biológico, na perspectiva espírita, é instrumento sagrado de progresso espiritual, e não um fim em si mesmo. Devemos cuidar dele sem exageros.

Esse apego à vida material e ao corpo é um dos fatores que dificultam a passagem do Espírito de retorno ao mundo espiritual. [4] É mais difícil desligar-se do organismo biológico, pois teme o inevitável: perder tudo o que considerava seu. Caso não trabalhe o desapego, o Espírito continuará a sofrer pela sua perda, mesmo estando “morto”. Manifestará desejo pelas “suas” coisas do mundo material e ficará aborrecido com os herdeiros (ou outras pessoas) que mexam nos pertences. Não raro poderá mesmo recriar essas coisas fluidicamente no além para sua satisfação desequilibrada.

Além disso, também nos apegamos às situações e aos relacionamentos dos quais gostamos, e por isso desejamos que permaneçam intactos. Qualquer mudança é vista como desagradável infortúnio a ser evitada a todo custo. Como isso é impossível, muita frustração decorre desse tipo de apego. Descobrimos que não somos donos das circunstâncias e nem das pessoas (não há como forçá-las a gostarem de nós). A perspectiva reencarnatória amplia nossa visão da vida e dos vínculos com as pessoas. Gradualmente vamos aprendendo a amar todos os outros Espíritos, sem fixação em certas épocas, sem preferências.

Podemos inclusive criar apego aos resultados de nossos atos, o que mostra o tamanho do desafio a ser enfrentado. Precisamos treinar para não permitir que nossas atividades sejam inspiradas pelo desejo dos seus frutos. Isso vale para toda ocasião, mas é especialmente aplicável para nossas boas ações. Devemos praticar o bem como quem serve e passa, exercitando o desapego das consequências. Do contrário, estaremos apenas estimulando o orgulho e a vaidade. Na perfeita sabedoria o Espírito não se apega aos resultados de seus trabalhos — dinheiro, reconhecimento, louvores, gratidão, produtos objetivos de qualquer espécie.

Gozos: entre a necessidade e o exagero

O prazer sensorial é um tópico relevante dentro dessa discussão sobre impermanência, pois que é transitório, pois mais intenso e gostoso que seja senti-lo. Aliás, costuma ser mais rápido e fugaz do que desejaríamos em muitas ocasiões. Em virtude dos efeitos que nos provocam, costumamos encetar esforços para repetir os prazeres. A princípio não há nada de ruim nisso. Acredito que seria insuportável estar reencarnado sem a capacidade de sentir qualquer forma de prazer corporal. Ocorre que frequentemente supervalorizamos a fruição dos gozos e cometemos excessos, podendo mesmo cair em viciação e descontrole de outros aspectos da existência.

Há variadas fontes de estimulação sensorial agradável que podem atuar sobre nosso corpo: alimentação, prática sexual, uso de substâncias, toques e assim por diante. O apego a essas sensações é fonte de sofrimento para nós pois, ainda imaturos, confundimos uma vida boa com aquela na qual estaríamos gozando o que e o quanto quiséssemos. A desdita está na busca desenfreada, na angústia quando não conseguimos sentir, na insatisfação crônica e na tristeza pela ausência do que desejamos. Querer se agarrar aos estímulos cujos efeitos duram poucos segundos é torturar-se em vão.

Pensar nas consequências a longo prazo é uma das formas de se educar para a fruição dos prazeres, sem se desequilibrar. Por exemplo, fumar (cigarro, eletrônico, narguilé, cachimbo, de palha, maconha e afins) é certamente prazeroso no momento em que se fuma, mas só tem efeitos deletérios: câncer, enfisema, insuficiência respiratória etc. O mesmo vale para todas as outras drogas: maconha, cocaína, ecstasy, álcool etc. Há milhões de pessoas dependentes de remédios e energéticos para fazer atividades diárias e/ou se divertir. Se a pessoa não está lúcida, viverá segundo a perspectiva hedonista, sôfrega, em busca da gratificação a curto prazo, em detrimento dos malefícios que colherá no futuro.

A repressão normativa, o discurso puritano religioso, o flagelo corporal e a abstinência forçada não resolvem a questão. Por essas práticas o indivíduo poderá até amortecer os seus sentidos e torná-los, em alguma medida, insensíveis aos prazeres sensitivos. Mas isso não torna necessariamente a pessoa insensível aos desejos destes prazeres. Tais desejos cessam somente quando a criatura educa-se através da meditação na impermanência, desenvolve a consciência da natureza transitória dos gozos e cultiva desapego deles. Muitas vezes é um processo longo, sofrido, pois a criatura apegada carrega esses desejos de prazer para o mundo espiritual. Será aquele Espírito que se coloca em situação degradante, atazanando encarnados para tentar obter alguma sensação semelhante à de quando estava no corpo biológico.

Carpe diem

A compreensão da impermanência ensina a valorizar o momento presente, pois é o que está ao nosso alcance. A pessoa que vai desenvolvendo sabedoria é aquela que aprende a viver no presente. A mitologia grega apontava dois grandes riscos a pesar sobre a vida humana: o apego ao passado e o apego ao futuro. Essas duas dimensões temporais são vazias, pois o passado não é mais e o futuro não é ainda. Elas não deveriam nos impedir de viver o aqui e agora.

O passado pode nos puxar para trás por dois motivos: nostalgia e paixões tristes. Se considerarmos que vivemos uma época pretérita feliz, tendemos a nos apegar às boas lembranças. Mas quando foi um tempo infeliz, tendemos a nos apegar aos remorsos, às culpas e às vergonhas. Por outro lado, podemos ser pegos pela ilusão do futuro, da ideia de que tudo será melhor depois. Imaginamos, entre castelos no ar, que as coisas vão se arrumar quando tiver certa quantidade de dinheiro, quando casar, quando tiver filhos, quando aposentar, quando passar em um concurso público, quando comprar um carro, quando trocar um móvel, quando viajar para a praia etc.

Kardec desenvolve esses mesmos argumentos, embora por motivos diferentes, discutindo a pluralidade das existências corporais e o conhecimento do futuro. [5] Ele defende a necessidade do esquecimento do passado para que o Espírito fique mais livre na presente reencarnação e foque no que precisa fazer agora. Já as revelações do futuro são restritas àquilo que ajudar a pessoa a cumprir seu planejamento reencarnatório. São desnecessárias as revelações que induzam o encarnado a paralisar-se na contemplação do que já fez ou na espera do que acontecerá.

Finalmente, aproveitamos o pensamento de André Comte-Sponville, de inspiração estoica: “o sábio é aquele que consegue lamentar um pouco menos, esperar um pouco menos e, portanto, amar um pouco mais”. [6] Podemos interpretar esse conselho em termos temporais: viver um pouco menos no passado, viver um pouco menos no futuro e habitar muito mais no presente. O apego aos tempos em que não podemos atuar é fonte comum de desapontamentos. É preciso estar integralmente no tempo presente, vivendo consciente do fluxo temporal, como um surfista aproveitando a onda no mar.

Referências:

[1] Música “Como Uma Onda (Zen-Surfismo)”. Composição: Lulu Santos e Nelson Motta.

[2] A Doutrina de Buda, parte “Dharma”, capítulo II. Autor: Huberto Rohden. Editora: Martin Claret.

[3] O Evangelho segundo o Espiritismo, capítulo XVI, itens 9 e 10. Autor: Allan Kardec. Editora: LAKE.

[4] O Céu e o Inferno, 2ª parte, capítulo I, item 8. Autor: Allan Kardec. Editora: IDE.

[5] O Livro dos Espíritos, itens 392, 393, 869 e 870. Autor: Allan Kardec. Editora: IDE.

[6] Mitologia e filosofia: o sentido dos grandes mitos gregos, capítulo 1, item “A primeira definição laica da vida boa ou o nascimento da primeira sabedoria filosófica”. Autor: Luc Ferry. Editora: Vozes Nobilis.

 

Imagem de Arek Socha por Pixabay 

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Publicado orginalmente no Estudos de Cultura Espirita:

Tudo passa, tudo sempre passará. Gabriel Lopes Garcia | by Estudos de Cultura Espírita | Mar, 2025 | Medium

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

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